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Na fase do rescaldo, nem tudo ardeu

Das vindimas falaremos depois…

O massacre dos incêndios voltou para nos atormentar. É por demais irritante ouvir a classe política (sem excepção), de parlamentares a candidatos a Belém, vir com a conversa de meninos, do género “temos de repensar a nossa floresta” ou “temos de tomar medidas de fundo”. A isto chama-se falar sem dizer nada, levantar um véu mas não avançar propostas credíveis e úteis. Entretanto algumas vinhas foram-se também na voragem e muitos se lamentam de se terem ido vinhas velhas que muito mais úteis seriam se permanecessem produtivas.

Ora, é preciso ter em mente que uma vinha não é um eucalipto; a vinha não arde à velocidade de cruzeiro de uma mata eucaliptal. Com fogo muito intenso na bordadura das vinhas podem algumas cepas acabar em cinzas mas a prática tem mostrado que a vinha é quase um corta-fogo que impede propagação descontrolada das chamas. Mas, diga-se, para ter essa função retardadora, a vinha tem de estar bem cuidada, a erva nas entrelinhas tem de ser rasteira. Parece lógico, uma evidência de La Palice (ou com dois ss) mas acontece que muitos produtores, que se reclamam de uma viticultura biológica, optam por não cortar as ervas, porque é menos agressivo para a planta, porque tem menos pegada de carbono, porque é mais natural, tudo debaixo do chapéu da “pouca intervenção”.

A pouca intervenção, a ideia de deixar a erva crescer à vontade, dá este resultado: são sobretudo produtores que se reclamam desta forma de abordar a viticultura que mais têm sido atingidos pelos incêndios nos últimos anos. A opção bio, que requer uma fase de transição que se estende por 3 a 4 anos antes da certificação, implica quebra significativa na produção (é sempre ajuizado contar com 25 a 30% de quebra) e o modelo não é uma panaceia aplicável em qualquer local e clima. Há zonas onde o clima é de tal madeira madrasto que só com muita fé e muitas orações se ultrapassam as doenças clássicas do míldio, do oídio, da cicadela, da black rot, e mais umas tantas que tiram o sono aos lavradores. Há, assim, que mudar o paradigma: para se conseguirem bons resultados não se deve empregar o conceito de “pouca intervenção”, sendo mais ajustado o de “muita intervenção” ou, dizendo por outras palavras, dá imenso trabalho fazer vinho com pouca intervenção. E quem andar todo o dia na vinha, vendo, olhando, sentido, cheirando as cepas e compreendendo o clima, é provável que não tenha vinhas ardidas, é talvez possível prevenir algumas das doenças a que as vinhas bio estão sujeitas.

Está a haver a nível internacional, nomeadamente em França, um abandono, em percentagem muito significativa, de produtores que se queixam que não conseguem rentabilizar o negócio se, em vez de produzir 10 toneladas de uva por hectare, a vinha decrépita e quase abandonada, produzir 2 toneladas. Em termos de viticultura tradicional, o exemplo é esmagador: em Champagne chega-se a fazer 25 tratamentos por ano. Para quê? Para produzir cerca de 15 toneladas por hectare. É que, não esqueçamos, a uva este ano foi paga, naquela região, entre €10 e 12 o quilo. É só fazer as contas (15 000 x €12) para perceber que o negócio, com frequência, fala mais alto do que a crença. Recordo-me de um produtor na Borgonha que não nos recebeu porque, disse-nos o importador, “está todo o dia na vinha e não recebe ninguém”. Fica a dúvida: será que ele também fala em “pouca intervenção”? Deve ser, deve…

Sugestões da semana:
(Os preços foram fornecidos pelos produtores)

Quinta de Cidrô Arinto branco 2024
Região: Douro
Produtor: Real Companhia Velha
Casta: Arinto
Enologia: Jorge Moreira
PVP: €22
A quinta fica em São João da Pesqueira e ali nascem vinhos varietais, também de castas estrangeiras. Após fermentação em inox, cerca de 80% do vinho estagiou em madeira (20% nova).
Dica: dá uma prova alegre e muito viva, com excelentes notas citrinas e uma grande frescura de boca. Perfeito para marisco ou peixes pouco cozinhados.

Quinta dos Távoras Reserva tinto 2022
Região: Trás-os-Montes
Produtor: Costa Boal Family Estates
Castas: misturadas em vinhas velhas
Enologia: Paulo Nunes
PVP: €10
O vinho, após a fermentação, teve um estágio de 8 meses na barrica.
Dica: muito vivo, na cor, nos aromas jovens, na fruta vibrante. Resulta envolvente na boca, com taninos polidos, tudo pronto para prazeres imediatos.

Monte d’Oiro Reserva tinto 2022
Região: Lisboa
Produtor: José Bento dos Santos
Castas: Syrah e 4% Viognier
Enologia: Graça Gonçalves/Grégory Viennois
PVP: €40
Vinha em modo bio. Selecção parcelar de várias vinhas da quinta. Fermentação em inox e estágio de 18 a 20 meses em barrica.
Dica: Muito fino no perfil, delicado na fruta, perfeito na integração da madeira. Rara elegância de conjunto, a deixar saudades no final.

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