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As saudades voltam sempre

E os vinhos, por arrasto, vão atrás

Não faltam no ambiente familiar e natalício as vozes que nos recordam que o Natal de hoje já não é nada comparado com o que foi outrora. Porque era no tempo da avó que os sonhos de abóbora tinham mais sabor, porque o bacalhau era curado ao ar livre e era mais genuíno, porque o porco tinha sido criado no curral e alimentado a legumes da horta, e por aí fora; um sem número de lembranças que nos fazem crer que outrora é que era bom, quando não havia decadência moral e, na voz dos populistas xenófobos, não havia nem tantos imigrantes nem retornados porque o país ainda tinha colónias. É uma retórica saudosista que se estende a inúmeras situações. De facto, como temos tendência a guardar do passado as memórias boas e a fazer Delete do que não nos interessa, essa imagem idílica do “antigamente é que era bom” também é válida para os hábitos, a música e, claro, os vinhos. Esse “fado” choramingas do elogio do passado está muito arreigado ao Fado, de que a casa da mariquinhas é apenas um exemplo.

Também nos vinhos o choro elegíaco do passado nos assalta com frequência, porque noutros tempos é que os vinhos eram bons e autênticos, porque havia mais harmonia com a natureza, porque não abundavam os químicos. Esta narrativa não só não é verdade, aqui ou em outro país que se queira dar como exemplo (insecticidas e herbicidas eram usados à bruta…), como não dá o devido valor aos avanços que a ciência tem tido e contribuído para a melhoria dos produtos que temos hoje. Diz-se, e com razão, que a França tem as regiões de vinho mais famosas e apreciadas e de onde saem os vinhos mais caros. Mas a estatística dos anos bons e menos bons, em Bordéus por exemplo, diz-nos que nos anos 50 houve apenas um ano grande – 1953 – e um bom, 1959; que a década de sessenta foi salva pelo magnífico 61, que a de 70 teve um bom em 75 e só a partir dos anos 80, com o extraordinário 82, se inverteu a tendência. Porquê? Porque passou a haver mais cuidados na vinha, na tanoaria e na higiene, porque a enologia evoluiu tremendamente, mostrando que agora tinha as armas para intervir quando era preciso e sabia guardá-las quando a Natureza era generosa. A história dos vinhos portugueses faz-se com glórias e desastres mas a verdade é que hoje temos vinhos mais bem feitos e com muito mais frequência. A afirmação é válida para todas a gamas e tipos, do mais simples até ao Porto Vintage.

Uns têm muita intervenção e muitos produtos associados, outros apostam em menor intervenção e maior risco. Se o objectivo do produtor é vender vinho a 2 ou 3 € no supermercado e quer produzir 500 000 ou 1 milhão de garrafas, o risco a correr é zero e a ciência pode ajudar. E há que não esquecer que muitos, mas mesmo muitos consumidores, é dessa gama que se abastecem, o que alguns snobes tendem a esquecer. Pouca ou nenhuma intervenção só é possível com uma grande ajuda da Natureza e ela é madrasta e não facilita o trabalho ao lavrador. Intervir sistematicamente pouco, por convicção ou crença ideológica, costuma dar disparate. Pode fazer-se um vinho extraordinário sem intervenção? Pode, mas só às vezes! E o alinhamento dos astros pode ajudar? Claro, desde que se tenha (escondido para ninguém ver) enxofre e sulfato de cobre.

Sugestões da semana:
(Os preços foram fornecidos pelos produtores)

Respiro Zizi branco 2022
Região: Alentejo (Portalegre)
Produtor: Cabeças do Reguengo
Castas: misturadas em field blend, plantadas nos anos 70
Enologia: João Afonso
PVP: €50
Uvas de uma parcela a 735 m de altitude. Como foi o mosto de maior qualidade nesse ano foi engarrafado à parte. Estágio de 15 meses em tonel usado. 1448 garrafas produzidas.
Dica: citrino na cor, com presença da madeira a envolver a fruta. Ainda com leve redução, resulta com muita personalidade e óptima acidez. Um branco de autor.

Monte do João Martins Reserva tinto 2017
Região: Alentejo (Portalegre)
Produtor: Miraldinos
Casta: Syrah
Enologia: Joachim Roque
PVP: €16
Teve um ano de estágio em madeira. Fizeram-se 2040 garrafas. Graduação de 15º.
Dica: maduro, alguma evolução na cor, boa textura de boca. Já lhe falta algum nervo mas está muito capaz para acompanhar a gastronomia regional.

Tapada de Coelheiros tinto 2020
Região: Alentejo
Produtor: Tapada de Coelheiros
Castas: Cabernet Sauvignon e 30% de Alicante Bouschet
Enologia: Luis Patrão
PVP: €30
A herdade pratica a agricultura regenerativa e bio, procurando o equilíbrio do ambiente, sem recurso a químicos. Cerca de 8500 garrafas produzidas.
Dica: esta é uma fórmula ganhadora, o tinto mostra grande energia, boa fruta, taninos macios, muito carácter. Será sempre uma boa aposta.

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