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Queremos um Natal frio

Vai um peru carbonizado?

Esta é a crónica que antecede o Natal, que se espera frio e que pede a lareira acesa. Quando o Expresso chegar, já está em marcha alguma azáfama típica da época. Para os que vivem no campo e têm galinheiro, é certo que já deitaram uns olhares assassinos ao peru que por ali anda e que tem, ainda sem se dar por isso, os dias contados. De lado está já a garrafa com a aguardente que o irá embebedar, numa espécie de sedação pre mortem: quer ele queira quer não, irá emborcar umas goladas de uma bagaceira (provavelmente não tão boa com a do “lavrador”…) e assim, em jeito de preparação para uma colonoscopia, não vai dar por nada. Nestas alturas fico com pena do bicho, até porque sendo uma carne tão desinteressante, ninguém percebe bem como foi ele o escolhido para a mesa de Natal onde é suposto todos estarem em harmonia familiar.

O assunto peru não é, felizmente, epidémico, não se espalhou igualmente por todo o país, continuando muita boa gente a preferir o bacalhau com couves e o polvo. Eu sou muito mais do tempo do bacalhau do que do polvo, bicho que por norma não estava incluído no cardápio familiar. Já o peru conheci-o bem, ainda alegre e a fazer glu-glu, na praça do Martim Moniz, em Lisboa onde, ao lado de muitas centenas de parceiros, ali estavam à espera dos algozes que os levariam para a bebedeira final. Na altura convenci-me que tinha um bom olfacto porque aquele cheiro horroroso que se sentia no ar me incomodava imenso; depois percebi que, afinal, toda a gente dizia que aquilo era pestilento. Era.

A verdade é que ninguém se incomodava porque era o cheiro igual ao dos galinheiros lá “na terra”, esse local idílico onde muitos lisboetas ainda tinham a alma e o coração, apesar de viverem na confusão da cidade. Já com o bicho num saco e a fazer um glu-glu cada vez mais tímido, quiçá suplicante, o regresso a casa ainda se fazia passando pela carvoaria onde se vendia muito vinho a granel ou então, na mercearia do sr. Antunes, onde pontificavam vinhos em garrafão, alguns deles com origem, imagine-se, em região demarcada. No caso dos anos 70 (época em que toda esta trama se passava), só podia ser do Dão e, claro, de adega cooperativa, que os armazenistas e produtores tinham outro tipo de negócio.

Ainda mais incrível é que, no início dos anos 90, estes Dão em garrafão ainda existiam nas mercearias de Lisboa. Caso eu na época já tivesse conhecido os livros, os gourmets certos e as receitas, poderia ter sugerido ao meu pai (feito cozinheiro natalício) que se fizesse um Faisão Souvaroff, receita criada no séc. XIX e em que o peru (após ser cuidadosamente desossado) acaba por servir apenas para lhe ser colocado no interior um faisão (também ele desossado) recheado com foie gras. Vai ao forno a temperatura elevada e o coitado do peru acaba no lixo, já completamente carbonizado, porque o objectivo é comer apenas o faisão.

O meu pai ter-me-ia dado a competente lambada e expulsado da cozinha se lhe tivesse sugerido tão inusitada receita; é que, sendo 11 à mesa, não se está bem a ver como seria possível executar tal coisa. A tarefa que me competia era abrir o garrafão e servir o vinho em jarros. Já era, digamos, um sinal que antevia o que depois foi e que ninguém sabia antes. Como diria um amigo meu: lá tás tu com essa conversa da treta!

Sugestões da semana:
(Os preços foram fornecidos pelos produtores)

H Grande Sousão tinto 2017 Late Release
Região: sem DO
Produtor: António Lança
Casta: Sousão
Enologia: Diogo Lopes
PVP: €35
A propriedade fica na Vidigueira. Esta casta, inabitual no Alentejo, tem muita presença nos Vinhos Verdes (Vinhão) e também no Douro com o nome de Sousão. Deste vinho apenas se fizeram 2000 garrafas. O produtor considera 2017 “uma colheita” histórica pela qualidade, o que então justificou a guarda destas garrafas para esta nova edição.
Dica: sanguíneo na cor, aroma ainda jovem, concentrado e rico, frutos pretos muito maduros. Bom equilíbrio na boca, para pratos fortes de forno.

Quinta da Romaneira Reserva branco 2023
Região: Douro
Produtor: Quinta da Romaneira
Castas: Gouveio, Viosinho, Rabigato e Boal do Douro
Enologia: Carlos Agrellos
PVP: €22
A quinta, uma das maiores do Douro fica à beira do rio, a montante do Pinhão. A casta Boal do Douro é a mesma que internacionalmente é conhecida por Sémillon, muito usada em Bordéus em vinhos secos e doces.
Dica: citrinos maduros bem presentes, boa frescura de aroma, sem interferência da madeira. Muito equilibrado, pede peixes em cozinhado curto.

Porto Colheita Quinta de Ventozelo 2014
Região: Douro
Produtor: Quinta de Ventozelo
Castas: tradicionais, com destaque para Touriga Francesa, Tinta Amarela e Tinta Barroca
Enologia: José Manuel Sousa Soares
PVP: €29,95
É o primeiro tawny da quinta, também comemorativo do ano da aquisição da propriedade pela Granvinhos. Nos Porto Colheita vem sempre indicada a data do engarrafamento, este foi em 2024.
Dica: com 10 anos, um Colheita é um bom compromisso entre juventude e alguma maturidade e não há como fugir: será sempre um belíssimo acompanhamento dos doces natalícios.

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