skip to Main Content

Celebrar, remando contra a maré

E contrariar os ditos populares

Entre outros recordo-me de dois ditos que são para aqui chamados e que são contrariados pelos produtores que hoje escolhi: “é preciso dançar conforme a música” e outro que diz “albarda-se o burro à vontade do dono”. O que está aqui em causa são as modas do vinho, modas essas que alguns deitam ao lixo. E bem! Existem neste negócio tipos variados de produtores que jogam em diferentes campeonatos: os que apostam nas grandes superfícies e cujas produções são às centenas de milhar ou milhões de garrafas; outros, um pouco mais modestos que andam pelas dezenas de milhar e outros que se dirigem no sentido totalmente oposto, apontando para franjas marginais de consumidores que gostam da diferença e que até não se importam de pagar mais por vinhos tortos e bicudos. Para não deixar fugir a modernidade até há quem se preste a figuras tristes mas, como diria o diácono, “não havia necessidade”.

Ora os produtores que seleccionei hoje pertencem ao clube dos teimosos. O vinho branco tem de ser leve, ter pouco grau e pouca cor? Então toma lá este Verde, carregado na cor, a sugerir oxidação mas cheio de vida. O vinho tinto agora tem todo se ser feito com pouca maceração, apresentar pouca cor, ter pouco grau e aproximar-se perigosamente de um palhete? Pois então Saramago responde com um Castelão muito concentrado, totalmente afastado das modernices mas, segundo o produtor, a corresponder ao modelo que entende dever ser o Castelão das areias, o que melhor representa o terroir de Setúbal. Nestas versões hardcore também há riscos, como acidez volátil mais elevada ou mesmo algum acetato de etilo mas o vinho mostra uma estrutura e um vigor que começa a não ser fácil encontrar na região. E a terceira escolha recaiu num tinto de Tannat, uma casta do sudoeste francês que encontrou no Uruguai as melhores condições para mostrar o que valia, tendo-se tornado hoje a casta-emblema do país. A Tannat tem tudo fora de moda, a começar na cor carregada, prolongando-se depois por taninos rijos e difíceis e muitas notas vegetais a esconder a fruta. Mais longe da moda era difícil. Depois de várias tentativas, o enólogo conseguiu captar-lhe os segredos e está agora um pouco mais amaciado.

Vivemos hoje um ambiente vínico onde alguma promiscuidade é permitida e onde cada um pode fazer o vinho que lhe assenta melhor no perfil. Sabemos que, depois, é o mercado que vai dizer se o tal vinho é viável ou se não passa apenas de uma deriva do autor, uma excentricidade que terá tendência a morrer pouco tempo depois da nascença. Não deixo de aplaudir os teimosos, tal como não deixo de criticar quem me quer fazer crer que, só para citar um exemplo, regiões de calor (como o Douro) e com castas tintureiras, agora tem que fazer uns vinhecos sem alma, sem cor, sem maceração, sem estrutura, que tanto poderiam ser feitos aqui como na China. A irritação prolonga-se quando ouvimos os produtores apresentarem esses vinhos como sendo a “expressão do terroir”.
Que não fiquem dúvidas: gosto de tintos abertos mas também gosto deles carregados, gosto de uns macios e outros taninosos, gosto deles com e sem madeira. Todos têm direito de fazer o que entendem mas, por favor, dispensa-se o proselitismo. Ah é verdade, a propósito das modas do vinho, há que fechar com este: “os cães ladram e a caravana passa”.

 

Sugestões da semana:
(Os preços foram fornecidos pelos produtores)

Quinta de San Joanne Leiras Mancas branco 2020
Região: Vinho Verde
Produtor: Casa de Cello
Castas: Avesso e Alvarinho
Enologia: Paulo Ruão
PVP: €60
Vinhas na zona de Amarante. Apenas se fizeram 1400 garrafas. O rótulo reproduz o da primeira edição deste vinho, em 1996.
Dica: muito carregado na cor, sugere oxidação mas a prova desmente; um branco cheio, de perfil evoluído mas com acidez marcante. Bom para queijos, por exemplo.

Quinta do Gradil Tannat tinto 2021
Região: Reg. Lisboa
Produtor: Quinta do Gradil
Casta: Tannat
Enologia: António Ventura
PVP: €17
Inicialmente surgiu associado à Touriga Nacional mas actualmente é um varietal desta casta francesa e um dos vinhos emblemáticos da Quinta do Gradil.
Dica: vigoroso, concentrado, muito vegetal mas envolvente e fresco na boca, com taninos bem envolvidos. Para pratos mais rústicos.

António Saramago Superior tinto 2016
Região: Reg. Pen. Setúbal
Produtor: António Saramago
Casta: Castelão
Enologia: António Saramago
PVP: €40
Fermenta em inox com 40% de engaço. Teve um mês de maceração pós-fermentativa e 18 meses em barricas novas de carvalho.
Dica: carregado na cor, denso e cheio, fruta negra. Taninoso e com muito volume, um tinto difícil que pede pratos fortes ou guarda em cave.

This Post Has 0 Comments

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Back To Top
Search