Pelas cepas mas também pelas bichas Janeiro é suposto ser uma época de clima frio,…

Abril 1974 – e o vinho era assim…
O ano que viu nascer um grande Porto Colheita
Uma das figuras que recordo do outro tempo é o sr. Luis. Era o dono da minha mercearia de bairro e os fregueses eram ali da zona, tudo gente remediada, que cozinhava em casa e que ali se abastecia diariamente dos produtos frescos. Invariavelmente havia imensa gente que comprava fiado e o sr. Luis lá ia anotando num livro, por sinal bem grosso, com uma página dedicada a cada cliente devedor. Na loja havia de tudo ainda que, para carne e peixe, fosse preciso ir à praça. À frente do balcão, alinhavam-se no chão os garrafões de vinho. Muitos e de todas as zonas, devidamente empalhados e, pasme-se, alguns da então chamada assim, Região Demarcada do Dão. À época eram poucas as regiões demarcadas: Dão, Vinho Verde, Colares, Bucelas e Carcavelos, Vinho do Porto e da Madeira. No resto do país, o que tinha valor eram as marcas, não o nome das regiões. Existiam nessa altura muitas adegas cooperativas (mais do que hoje) e nalguns casos eram os “emblemas da região”, como o caso do Alentejo. Já na Bairrada acontecia uma situação curiosa e original: além das cooperativas havia uma miríade de empresas sempre com nome de “Caves” e que funcionavam como armazenistas e loteadores: compravam na produção e engarrafavam com o nome da empresa; em alguns casos faziam lotes de várias regiões, como os célebres Garrafeira, como Aliança, S. João, Borlido, Barrocão, entre tantas outras.
O Douro quedava-se em algumas marcas de referência, como os vinhos da Real Vinícola e Real Companhia Velha, Sogrape, Constantino e, depois, algumas cooperativas. Ao lado da loja do sr. Luis, havia uma carvoaria, sempre um tugúrio pouco recomendável onde se comprava carvão para o fogareiro e, com frequência, vinho a granel. Cada um levava de casa o garrafão vazio – eles existiam em vários formatos e capacidades, nomeadamente um de tamanho moderado e transportável, de 2 litros, e era ali que se comprava o vinho. De onde era? Mas isso interessava para quê? Os clientes tinham confiança no sr. Luis e isso era o mais importante. Havia o branco e o tinto, o rosé (tinto apalhetado, como lhe chamava o actor António Silva) era coisa que não se vendia nesta modalidade ainda que existissem em garrafa inúmeras réplicas do Mateus rosé.
Nas classes abastadas e que frequentavam os lugares “chiques”, havia o hábito de consumir marcas que davam prestígio e status social: Garrafeiras C.R.&F., Garrafeiras Dom Teodósio, Francisco Ribeiro, José de Sousa Rosado Fernandes, Mouchão e Tapada do Chaves; para momentos de verdadeira celebração podia-se chegar ao Barca Velha, à data estaria em venda o 1966; Reserva Especial Ferreirinha era coisa que já não se encontrava desde a colheita de 1962.
O Dão, apesar do “elevado” estatuto de região demarcada, tinha pouco para oferecer, para além das adegas cooperativas. Muitas caves da Bairrada e mesmo empresas do Vinho do Porto engarrafavam vinho do Dão mas tratava-se sempre de vinhos adquiridos às cooperativas. Tinham justa fama os vinhos da marca Terras Altas, Dão Pipas, Caves Velhas ou Meia Encosta mas verdade é que não era ali que estavam as melhores referências nacionais. A restauração vivia muito de marcas-âncora, daquelas que se encontravam em todo o lado: Romeira, Quinta do Convento, Gaeiras, Bucelas Caves Velhas, branco Monopólio, por exemplo. No caso dos generosos, como é o caso flagrante do Vinho do Porto, era ainda mais difícil do que é hoje saber o que se estava a beber; as designações, hoje vulgares de 10, 20, 30 anos, por exemplo, não existiam, e cada casa tinha, para estas categorias, nomes próprios e muitas vezes fantasiosos. Chegava se lá pelo preço mas ninguém sabia exactamente do que se tratava. Existiam os vintages mas “isso era para os ingleses”, como se dizia e os LBV, em boa verdade, só começaram a circular após o 25 de Abril. Uma situação, infelizmente não mudou nestes 50 anos: todos têm uma garrafa de Porto em casa à espera do “tal” momento e, quando ele chega, finalmente, conclui-se que o Porto, afinal, é uma treta que não vale nada. Culpa do Porto? Certamente que não, culpa de quem pensou que um Porto de 30$00 (à época) poderia durar, melhorando, durante um ror de anos. Bebia-se um cálice no Natal e guardava-se o resto para o próximo Natal ou baptizado. O sr. Luis tinha várias destas nas prateleiras mas o que ele verdadeiramente vendia era a Macieira, Constantino, Croft e 1920, os brandies que alimentavam a população.
Bagaceira consumia-se muito e, na restauração, esperava-se sempre que o patrão trouxesse, no final da refeição, uma garrafinha sem rótulo com a bagaceira caseira que tinha trazido “lá da terra” e todos os lisboetas suspiravam quando se falava “da terra”. O que o sr. Luis não imaginava é que o ano de 74 iria ser muito bom, até para Vinho do Porto. Na altura da vindima, Michael Symington mostrava-se muito satisfeito com a qualidade e a “atmosfera vintage” que se vivia. No entanto, os tempos de incerteza que se viveram a seguir levaram a que o sector não declarasse o 74 como vintage, tendo remetido o stock para estágio em barricas. Não houve vintage mas chegaram até nós os Colheita de 74, de excelsa qualidade, como o Quinta do Noval, Kopke e Barros. Esta empresa, que hoje pertence à Sogevinus, voltou a engarrafar mais uma parte do stock de 74 de que dispõe e acaba de pôr no mercado, com rótulo alusivo ao 25 de Abril (€170). Também recentemente a Symington lançou o Colheita de 74 (€390). Não nos queixamos da falta de Porto para comemorar o 25 de Abril. Viva!
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