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Não é a colheita do século, é só do ano

Isto já é mania…

Em cada vindima, seja ela boa ou apenas vulgar, surgem sempre vozes a apregoar o impensável: é a colheita do século! E quem disser o contrário, não só é burro, como não é bom português. É bom que se diga que este epíteto pode ser usado por quem assim o entender, não corresponde a qualquer classificação, seja ela oficial ou outra. Pode então perguntar-se o porquê da frequência com que uns quantos produtores se chegam
à frente afirmando que «nunca viram nada assim» (Nota: esta frase tem direitos, foi durante muitos anos usada por Dirk Niepoort…). A razão é mais prosaica do que se poderia pensar: é preciso vender a colheita mais recente e, melhor que ninguém, é o próprio produtor o mais indicado para mentir à descarada. Diz-se, nas conversas da má-língua, que a seguir a pescadores e caçadores, os enólogos são quem mais mente; com um grande à-vontade, com um enorme descaramento. Porquê? Porque o negócio fala mais alto e uma mentirita aqui, outra ali, não aleija ninguém e ajuda imenso ao balancete e à folha Excel. Não sei onde nasceu a ideia da «colheita do século» mas não me admiraria que tivesse sido em Bordéus, região onde proliferam os mentirosos encartados: por lá só há duas classificações de colheita, Excepcional e Muito Bom; até nos anos de m… eles conseguem ir buscar adjectivos simpáticos em que o vinho pior é mencionado como Un petit vin! Tenho presenciado amiúde esta cena triste de ver um produtor a clamar pelas virtudes da última colheita que, ah e tal o crítico(a) inglês(a) gostou muito e o crítico americano pôs nos best of e nas bargains e por aí fora. Nem sempre é óbvio que no momento da vindima se consiga captar de imediato que estamos perante uma colheita grandiosa. Por vezes há enganos: todos embarcaram na maravilha dos 2011 (por força da declaração de Porto vintage clássico) e, afinal, é provável que os DOC Douro 2012 se mostrem melhores e mais equilibrados. E mesmo nos anos de arromba do Vinho do Porto, de que o 1994 é o melhor exemplo, o tempo encarregou-se de mostrar que não eram todos excepcionais (e isto sem falar das fracas declarações de 1975 e 1991…). É verdade que quanto mais diversa for a região (de exposição, altitude, por exemplo), mais possibilidades há de encontrarmos pequenas parcelas onde tudo correu bem quando, na maioria, tudo correu menos bem, ou mesmo mal, sobretudo se falarmos das doenças da vinha. Para os que gostam da frase «me mente que eu gosto!» os produtores e enólogos têm um largo repertório em carteira: técnicas ancestrais, intervenção mínima, nada de químicos, nada de leveduras químicas, nada animal, respeito pelo terroir. É só escolher. Os resultados nem sempre são famosos mas a narrativa atrai uns quantos. A ideia da grande colheita em ano de pouca colheita é possível (como no ano de 88) mas não é regra. O vinho é e continuará a ser um negócio já que é preciso pagar as contas. Isso não deve ser razão bastante para, ano após ano, surgir de novo a estafada conversa da qualidade óptima da colheita mais recente. Deixemos, portanto, as histórias da carochinha para os meninos. Colheita do século? Ora, ora…

Sugestões da semana:
(Os preços foram indicados pelos produtores)

Ameal Reserva branco 2020
Região: Vinho Verde
Produtor: Quinta do Ameal
Casta: Loureiro
Enologia: José Luis Moreira da Silva
PVP: €25
A quinta tem 30 ha, dos quais 14 de Loureiro. O mosto fermentou em barrica usada e num foudre austríaco novo de 2000 litros e aí permaneceu 12 meses. 3950 garrafas produzidas
Dica: muito expressivo e complexo no aroma com a madeira superiormente integrada no conjunto, boa fruta madura, tudo com classe. Gordo e redondo, um belo exemplar da casta e da sua versatilidade.

Adega Mãe Arinto branco 2019
Região: Lisboa
Produtor: Adega Mãe
Casta: Arinto
Enologia: Diogo Lopes
PVP: €8,45
O vinho fermentou em inox mas permaneceu na cuba por 6 meses em contacto com as borras. Resulta assim com muito mais cor. 10 000 garrafas produzidas.
Dica: muito bom volume, gordo mas sem pesar, um óptimo branco para peixes gordos ou queijos de pasta mole.

Quinta do Noval Reserva tinto 2018
Região: Douro
Produtor: Quinta do Noval
Castas: Touriga Nacional (60%), Touriga Francesa (25%), 15% castas misturadas na vinha velha (field blend)
Enologia: Carlos Agrellos
PVP: €54
Fermentação em inox e estágio de 12 meses em barricas (50% novas). Outros vinhos do Noval: varietais (Touriga Nacional, Syrah e Petit Verdot), Cedro do Noval e Maria Mansa.
Dica: outrora superconcentrado, austero, taninoso e com muita madeira, hoje mostra-se bem mais elegante, fino, polido e agradável de beber desde já. E não perdeu longevidade.

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