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EXPRESSO: 20 ANOS DA GERAÇÃO DOURO

Foi há já duas décadas que o Expresso publicou, na revista Única, uma reportagem sobre a nova geração de enólogos que estava a mudar o Douro. Todos jovens e com imenso entusiasmo, com vontade de mudança e com a camaradagem própria da idade. Fomos juntá-los de novo, na mesma quinta e fizeram-se fotografar nos mesmo locais. Os jovens promissores de então transformaram-se em referências absolutas da região. O novo Douro muito lhes deve. O prazer de estarem juntos, ainda que cada vez mais difícil, manteve-se.

TEXTO: João Paulo Martins
In, Expresso 21/09/ 2023

Marta Casanova, quando olhou para a fotografia actual e a comparou com a do Expresso de há 20 anos não hesitou «Olha, ainda estamos muito benzinho», disse. Marta esteve com este grupo em 2003 e voltou agora, tendo conseguido arranjar um tempinho para este encontro que acabou por se prolongar por quase todo o dia. De enóloga que era na quinta da Brunheda, Marta acumula agora as de Directora-Geral da Quinta da Côrte, mantendo toda a responsabilidade da enologia. A quinta, situada no Cima Corgo, é uma das propriedades mais fotografadas do Douro pela feliz combinação de vários tipos de implantação de vinha da região e ser fácil de fotografar uma vez que a estrada que segue para S. João da Pesqueira corre pela encosta que fica mesmo em frente à quinta. Tal como em quase todas as quintas, também o enoturismo e as «portas abertas» das propriedades geram mais movimento de visitantes, mais provas, mais dormidas, mais complicações na gestão do pessoal. Falta tempo para muita coisa, até para retomar um projecto que teve em tempos de fazer um vinho seu, algo que apenas aconteceu na colheita de 2011. Chamou-lhe então Friends Collection nº 1 mas a verdade é que o nº 2 nunca viu a luz do dia. Ela não desiste, «quem sabe, um dia, gostava de voltar a fazer. Talvez quando tiver mais tempo…»

O encontro que teve lugar na Quinta do Monte Travesso foi muito mais uma reunião de amigos do que uma assembleia de enólogos. A convocatória foi feita pelo anfitrião de sempre, Bernardo Nápoles, que desta forma juntou de novo, na sua quinta, os enólogos que aqui tinham estado há 20 anos. A tal convocatória foi feita com meses de antecedência e com reminders periódicos para que ninguém falhasse. Ninguém faltou porque foi em Julho, ainda antes das férias e das vindimas. À medida que iam chegando à quinta, sucediam-se os abraços, os sorrisos e o evidente prazer que se antevia neste encontro de velhos conhecidos. A enorme antecedência foi necessária porque actualmente não é só a enologia que os prende. Como nos disse Francisco Ferreira (Vallado), «na altura os nossos projectos eram menos conhecidos, eram mais pequenos, quase não havia visitas às quintas. Em 2003 eramos nós que decidíamos tudo. Hoje há um fenómeno que se iniciou depois de 2003 (o enoturismo) e, no Vallado, de 5 quartos em 2005, o enoturismo cresceu tanto – com a Casa do Rio e a abertura do hotel do Vallado, em 2011 – que actualmente representa cerca de 25% da facturação da empresa. E, quanto a visitas, hoje temos cerca de 20 000 visitantes que vêm fazer provas e visitar à adega. Isso obrigou a um grande alargamento do pessoal que aqui trabalha: só entre vinha e adega temos 30 pessoas; só na vinha temos entre 15 e 20 em permanência». E, remata, «em 2003 fazíamos 150 000 garrafas de 9 referências e hoje fazemos 1 500 000 de 27 referências». O tempo para os amigos é o que começa assim a faltar.

Com Francisco, no Vallado, trabalha desde sempre o primo Francisco Olazabal (Xito, como é conhecido por todos), da Quinta do Vale Meão, propriedade emblemática criada de raiz por D. Antónia Adelaide Ferreira e que de que Xito é o continuador do projecto. O «tio», como era chamado pelos amigos há 20 anos, é o mais velho do grupo. À época já era casado (como vários outros) já tinha filhos e já estava no Vale Meão. Como nos contou, «em 2003 tínhamos o tinto Vale Meão (desde 1999) e o Meandro, um vinho que é feito com uvas nossas e outra compradas. A primeira vindima foi vinificada no Vallado porque a adega do Vale Meão ainda estava em uso pela Casa Ferreira. «Começámos com 40 ha e actualmente temos quase 100 ha de vinhas mas isso não levou ao crescimento da marca, desde 2000 que o Vale Meão corresponde a 21 000 litros de tintos e desde então, em média, nunca passámos disso, é mesmo o lote do melhor que temos na vinha. As uvas vêm sempre das mesmas parcelas mas com a idade das vinhas a aumentar, a produtividade tem tendência para baixar e em 2020 e 2019 fizemos menos do que aquela quantidade». Entretanto criou novas marcas, vinhos de parcela que largaram o portefólio.

Uma questão de Hard e Software

É inegável a importância que este grupo teve no Douro. Faltam na fotografia alguns outros elementos que, também eles, contribuíram para o novo Douro. Todos referem que nesta foto faz falta Jorge Moreira, enólogo na Real Companhia Velha, Quinta de La Rosa e que tem o projecto pessoal, Poeira. Também ele pertence a esta geração que surgiu a seguir à «revolução Dirk Niepoort» (o termo é nosso) dos anos 90. Como nos recordou Xito, «a região tinha o hardware (as uvas) mas tinha défice de software e esta geração veio ajudar na afinação, vivíamos perto das vinhas já não eramos do Porto que vínhamos de vez em quando ao Douro». Dizem as más-línguas que estes são os «agrobetos», o pessoal da cidade que vêm fazer vinho no Douro! Alguns sentem-se mais urbanos, como Sandra Tavares da Silva, alfacinha de gema, que agora mora em Vila Real onde se instalou com a família. Há 20 anos ainda morava no Pinhão, numa casa que ainda mantem, mas com a pressão escolar dos filhos toda a família se mudou para Vila Real. Na altura ainda era enóloga da quinta Vale D. Maria, então na posse de Cristiano Van Zeller e hoje pertença da Aveleda, mas actualmente é a sua empresa, com o marido Jorge Borges, que lhe ocupa a maior parte do tempo. O vinho Pintas, um tinto que nasceu em 2001, é hoje uma referência absoluta da região e a empresa alargou o seu portefólio com os vinhos da Quinta da Manoella, propriedade que Jorge herdou. A Wine & Soul começou devagarinho mas hoje já representa 120 000 garrafas/ano, onde se inclui também Vinho do Porto e com preço médio bem elevado para aquilo que se pratica na região. Jorge Borges, acreditamos, já em 2003 devia sonhar com carros e corridas, uma paixão antiga que, de tempos a tempos, ainda pratica. Caso tenha a possibilidade de fazer uma viagem Pinhão – Régua com Jorge ao volante, convém respirar fundo ter o cinto de segurança bem preso. E falo com conhecimento de causa! Hoje o filho mais velho já participa nas vindimas e há muito para vindimar quer nas propriedades da família quer em parcelas mais afastadas, como Murça, onde nasce o branco Guru, outra marca emblemática da região.

O software de que Xito falava pode ter muitas matizes e por isso estes produtores/enólogos não formam um grupo homogéneo. Uns trabalham em empresas que se fizeram grandes, outros, como Mateus, aposta mais em projectos de pequena/média dimensão com pesquisa e busca de vinhos alternativos. O apelido Nicolau de Almeida que carrega tem o seu peso e Mateus não esconde o prazer que é trabalhar com a família no projecto Monte Xisto, uma propriedade comprada pelo pai ainda nos anos 90, actualmente com 10 ha de vinhas e onde as práticas vitícolas se pretendem mais amigas do ambiente, com ausência de químicos. É também nesse sentido que Mateus, que em 2003 tinha 25 anos e tinha acabado de se formar em França, aponta o seu projecto em Foz Côa. Em 2003 tinha abraçado o projecto dos vinhos Muxagata, de onde saiu em 2015 para começar tudo em Foz Côa. Nostálgico em relação ao passado, acha que então «o Douro estava mais activo, havia mais vivência e mais vontade de fazer coisas novas e mais força anímica. O que procuro no meu vinho é descobrir coisas novas, novas abordagens. Neste sentido acho que hoje estou a contribuir mais para a região do que quando fazia os vinhos Muxagata: estava a aplicar uma receita que tinha aprendido em França mas em boa verdade não estava a criar nada. E também faço Vinho do Porto que é uma obrigação moral (risos) mas também aqui estou a procurar fazer diferente, um Ruby seco e o branco seco, categorias pouco exploradas.»

Da cidade para o campo

Do Porto ao Douro hoje «é um tiro» com todos dizem e mesmo os que estão mais longe (Mateus e Xito) confirmam que agora, com as novas estradas, é muito mais rápido chegar ao Porto. Viver permanentemente no campo muda os hábitos e Mateus lembra que «nasci no Porto mas actualmente, quando venho à cidade gasto as pilhas em três dias e quero ir-me embora para Foz Côa, estou longe de tudo mas sinto-me em casa». A maioria rumou ao Douro a partir do Porto mas Manuel Lobo é do Estoril e Sandra, de Lisboa. Vila Real acaba por ser a cidade onde vivem muitos enólogos do Douro. Situada no centro da região, dali é mais fácil chegar a todo o lado e tem as infra-estruturas necessárias a quem tem família. Manuel Lobo era, em 2003, enólogo da quinta do Côtto, empresa com pergaminhos e pertencia a um dos mais controversos proprietários da região, Miguel Champalimaud. Também ele rumou do Estoril para fazer o curso em Vila Real e depois andou pelos 4 cantos do mundo a fazer vinho, da Califórnia à Austrália. Depois passou para a quinta do Crasto onde ainda hoje se mantém. Pelo seu nariz e pelas decisões que toma no Crasto, passam alguns dos vinhos míticos que a região tem, o Vinha Maria Teresa e o Vinha da Ponte. Com mais atenção dispersa no sul, Manuel percebe que hoje é bem mais difícil manter grupos destes com encontros regulares. Confirma que «com um grupo assim tão alargado não é fácil, hoje temos vários grupos mas mais pequenos. Na altura estávamos mais ou menos todos a começar e havia mais tempo para viver a paixão do vinho; hoje temos vidas tramadas. A nova geração veio para o Douro para conhecer, para fazer melhor e fazer diferente». E vida tramada é conceito que se pode facilmente aplicar ao anfitrião, Bernardo Nápoles. O trabalho de enologia da sua quinta do Monte Travesso está hoje bem entregue ao jovem enólogo que é o seu braço direito, Daniel Souto. É que o trabalho de viticultura na Symington é muito absorvente. É que «com o constante acrescento de propriedades com mais esta quinta ou esta parcela o trabalho dispersa-se e a equipa tem por isso imenso trabalho; é uma correria por toda a região para acorrer a todas as chamadas.» Ficou por isso adiada a aventura de velejar pelo oceano, a sua grande paixão e, pelo que vimos, não é tão cedo que o barco larga amarras. Na sua quinta, como em muitas outras, o enoturismo adquiriu imensa importância, algo que em 2003 praticamente não existia e que hoje serve de (grande) equilíbrio nas contas. E também Diogo Frey, enólogo em vários projectos da região não está propriamente folgado de tempo.
Foi por ser uma geração sem tempo que este encontro se revelou tão oportuno e desejado. Ninguém se lembrava há quanto tempo não se reuniam e das conversas e discussões durante o almoço, se conclui facilmente que a troca de ideias bem que podia ser mais frequente: todos têm projectos, ideias e vontade de fazer novo e diferente. E já depois deste encontro ter acontecido todos ficámos a saber que a quinta do Vallado vendeu 50% do capital da empresa à Teak Capital, uma empresa com interesse em múltiplas áreas e que vem reforçar a capacidade do Vallado para desenvolver projectos no futuro, saindo assim do espartilho de uma estrutura unicamente familiar.

E os vinhos, de 2003 para cá?

Este é o tema em que quase todos concordam que mais se evoluiu. Francisco Ferreira, no texto de 2003, revelava um desejo que amplamente se cumpriu: «o Douro merece 20 ou 30 bons vinhos» dizia na altura. Hoje é com um sorriso irónico que se lê esta frase e é caso para perguntar, que factor multiplicativo é que se quer para aquele número de vinhos? A verdadeira explosão de vinhos DOC Douro fez com que Cristiano Van Zeller tenha dito há uns meses, «quando comecei nos anos 80 havia meia dúzia de marcas de vinhos Douro (sem contar com as adegas cooperativas) e hoje há quase 1000». A preocupação de Francisco não foi esquecida, está bom de ver!
O mundo enológico de 2003 e os vinhos que se procuravam obter pouco contacto têm com os actuais. O conceito era, ainda na esteira do estilo ao gosto do crítico americano Robert Parker, vinhos tintos muito extraídos, que resultavam com elevado teor alcoólico e em que a presença da barrica nova se fazia sentir abundantemente. Hoje, todos concordam, sabe-se muito mais sobre barricas, há muito mais alternativas sobretudo para os vinhos de entrada de gama (aduelas, aparas, pós de madeira) e sabe-se muito mais sobre a adaptação de barricas de certas tanoarias a determinados vinhos e castas. Xito Olazabal recorda que tentou usar no Dão barricas da mesma tanoaria que usava no Douro para estagiar a Touriga Nacional e teve de mudar porque, diz, «era um desastre; simplesmente não funcionava no Dão apesar de no Douro dar óptimos resultados». Este é o tipo de trabalho de minúcia e de precisão que se desenvolveu no Douro. À época ninguém falava em vinhas velhas, não se falava em usar barricas usadas para estagiar vinhos, a viticultura só timidamente tinha «subido os montes» à procura de frescura e de menos álcool. E no caso dos vinhos brancos era muito evidente que o «peso» da madeira era a moda e os brancos de então pouco ou nada têm a ver com o que actualmente se faz no Douro. Recordemo-nos que João Nicolau de Almeida, então enólogo da Ramos Pinto (e pai de Mateus), quando, no início da década de 90, começou a produzir os seus vinhos com a marca Bons Ares introduziu duas castas francesas – Sauvignon Blanc e Cabernet Sauvignon – como «castas melhoradoras», como lhes chamou, porque entendia que tínhamos défice de boas castas, quer para brancos quer para tintos. O resultado foi bom e tão bem aceita que ainda hoje aqueles vinhos integram aquelas variedades.

A descoberta do «novo» Douro, dos brancos cheios de classe, das vinhas velhas e das castas antigas é um processo que não é da responsabilidade exclusiva deste grupo mas pode dizer-se que estes nove enólogos também ajudaram à mudança. Manuel Lobo é peremptório: «dizia-se que o Douro não era terra para fazer grandes brancos, havia um grande desconhecimento dos vários terroirs que compõem a região; há 20 anos, uma vinha velha era arrancada e pronto. O conhecimento que temos hoje, na altura não exista».
De certa forma nestes 20 anos não houve apenas melhorias técnicas, houve também o regresso a práticas antigas, como os lagares para fazer DOC Douro e não apenas Vinho do Porto; voltaram também os tonéis para amadurecer os vinhos e as cubas de cimento para fermentar mostos; as experiências continuam e Mateus gosta de se incluir no grupo dos «descobridores» permanentes. Com a sua colecção Tans-Douro-Express procura fazer vinhos nas três sub-regiões, Baixo Corgo, Cima Corgo e Douro Superior, «e não faço vinhos de castas, o que quero é mostrar as particularidades de cada zona onde faço os vinhos». Hoje há também vontade de regressar ao plantio de vinha em vaso (não aramada) e procurar compreender melhor as castas. Com a imensidão de variedades que há no Douro não falta material mas nem sempre é fácil porque a relação com os organismos do sector é por vezes tensa, há vinhos chumbados e isso obriga a refazer lotes e mudar procedimentos. Nem sempre o desejo de inovação encontra resposta no Instituto dos Vinhos do Douro e Porto (IVDP). Mas, como lembra Manuel Lobo, «há ainda muito por fazer, fazer vinhos com identidade é um desejo de todos».
As vinhas velhas não são uma panaceia, algo milagroso que só por si gera vinhos excepcionais. Francisco Ferreira recorda que no Vallado «tivemos de arrancar quase tudo o que era vinha velha para brancos porque havia ali castas sem qualquer interesse, com pouca acidez e que tendencialmente geravam muito álcool. Poderiam servir para Vinho do Porto mas para Douro faltava-lhes quase tudo».
Como é difícil juntar um grupo tão alargado de gente tão ocupada, o momento foi usado para, com a conivência de todos, marcar já o próximo. E Marta Casanova já fez a pré-convocatória: o próximo encontro será em Janeiro, na Quinta da Côrte! (JPM)

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