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Lagares: a tradição ainda é o que era

É o método mais antigo de fazer vinho e, em muitos casos, o lagar não sofreu qualquer alteração até à actualidade. A verdade é que já não são muitos os métodos de fabrico que se possam reclamar de tal ancestralidade. Por cá os lagares persistem um pouco por todo o país, com maior incidência no Douro. Fomos ouvir produtores e enólogos. Crentes, mas receosos.

TEXTO: João Paulo Martins
In, Grandes Escolhas / Fevereiro 2023

Entrei na adega só para ver o aspecto, uma vez que me tinham dito que era muito velha e, por isso mesmo, cheia de charme. A noite estava a cair e, como a porta estava aberta, entrei. Era muito fraca a visibilidade e estava à espera de encontrar um grande armazém, vazio e algo desarrumado, ou seja, tudo o que se espera de uma velha casa que já cumpriu a sua missão e que agora aguarda pacientemente que seja demolida. Já dentro da adega reparei que não estava sozinho; ouvia-se um ruído compassado, discreto e algo misterioso que só a habituação à escuridão me permitiu descortinar. O grande armazém albergava vários lagares e o tal ruído compassado mais não era do que a pisa que estava a decorrer. Um lagar cheio de gente a caminhar lentamente, todos abraçados, ora para lá, ora para cá, sem ninguém falar. As pernas levantam-se a compasso, todas ao mesmo tempo e vêm bem acima para que se consiga “cortar” as uvas na perfeição.
O que aqui descrevo, tanto pode ter tido lugar no Douro, na vindima de 2022, como poderia ser um relato de uma pisa há dois ou três séculos. A pisa a pé não mudou, a norma do silêncio, enquanto se corta, permanece, o caminhar abraçado é uma técnica de acerto do passo muito mais do que uma manifestação afectiva. Muito provavelmente a maior diferença prende-se com o grupo de pisadores: agora é habitual encontrarmos homens e mulheres dentro do lagar quando outrora tal era interdito, era um trabalho de homens. Hoje temos homens, mulheres, jovens e até crianças, estrangeiros visitantes que “adoram” o folclore ligado à pisa. Todos são bem-vindos, sobretudo numa época em que a carência de mão-de-obra é tão gritante. E, se em algumas adegas a festa é assumida como tal desde o início da pisa, como na Quinta do Vesúvio, em muitas outras aquele silêncio inicial do período mais duro do corte mantém-se. Só quando o capataz dá a ordem de “liberdade” é que os abraços terminam, cada um dos pisadores caminha isoladamente e em qualquer direcção, começa a tocar a música, puxa-se do cigarro e a festa é outra. No caso da música, o que toca depende de quem está a assistir: já se sabe que se forem turistas, jornalistas ou forças vivas da região e música é de folclore, sempre com muita concertina e ferrinhos. Mas, se o ambiente for de gente da casa e abundarem os adolescentes/jovens adultos, é certo e sabido que os AC/DC vão-se fartar de indicar o Highway to Hell como caminho a seguir no lagar (aqui neste ponto da escrita fiz um intervalo e fui ouvir pela 100ª vez esta música, na versão do concerto no estádio do River Plate). Foi por ter assistido exactamente a uma situação idêntica num lagar do Douro que recordei aqui o momento. Mas fica sempre uma pergunta no ar: como e porquê nada mudou em centenas de anos?

Em vinificações mais minimalistas, uma selha pode fazer as vezes do lagar, como aqui com Márcio Lopes.

Lagar: uma dinâmica insuperável

O lagar que conhecemos ainda hoje tem origens muito remotas e já os romanos o usavam para pisar as uvas. Foi sempre à força de pés humanos que a pisa se fez. Não necessariamente na adega, já que por vezes as uvas eram pisadas inicialmente na própria vinha. As lagaretas que se conhecem e que se chegaram até aos nossos dias, quer no Dão quer em Trás-os-Montes, são disso exemplo: pequenos espaços de pedra, baixos em altura. No Dão vi vários e na Quinta da Taboadella ainda lá estão vestígios, com zonas distintas: uma de pisa, outra de escorrimento e a terceira onde se acumulavam engaços e películas. O local da pisa não tinha de ser obrigatoriamente de pedra, uma vez que muita pisa se fazia também em dornas de madeira onde entravam os pisadores, de calças arregaçadas ou mesmo nus. A preferência dada à pisa nas instalações da adega prendia-se também com o facto de ser ali que estava a prensa. O mosto obtido no lagar da vinha era depois levado para a adega em ânforas onde terminava a fermentação ou fermentava na própria adega, não raramente em talhas.
A pisa foi durante séculos um assunto masculino e não se estranha por isso que Vizitelly, no seu livro Facts about Madeira and Port (1880), apresente uma gravura onde se vêem algumas mulheres dentro do lagar, com a legenda Lovely woman in lagar (em Jancis Robinson, The Oxford Companion to Wine). Era raro assim haver mulheres na pisa e os próprios lagares estavam preparados para que os pisadores não tivessem de abandonar o lagar para ir à casa de banho urinar; num dos cantos do lagar existia uma espécie de cano onde se poderia urinar para evitar que tal ocorresse mesmo dentro do lagar. Existia também a crença popular que as mulheres menstruadas não podiam pisar porque “o vinho não fervia”; por outro lado, “as crianças raquíticas eram introduzidas num lagar quando da pisa, pois tal fortalecia músculos e ossos” (Dicio. do Vinho do Porto).
Durante séculos e remontando à Idade Média, os engaços, após a fermentação eram depois sujeitos à prensa, também ela mais simples ou mais complicada mas sempre a permitir separar as primeiras prensagens das últimas. Um longo tronco enfiado na rocha que, com a ajuda de tábuas de madeira que se colocavam em cima dos engaços atados com cordas (por forma a fazer um monte cilíndrico) e depois, na outra ponta, iam-se colocando pesos para obter todo o mosto possível; em alternativa um fuso que se ia rodando para forçar o resto do líquido a sair dos engaços. Se levada até ao fim, o engaço ficava seco de tão apertado que tinha sido. Hoje não se faz exactamente assim porque se sabe que apenas da primeira prensagem mais suave se pode obter o melhor vinho. O final da prensagem é então conhecido como “vinho de prensas”, apenas usado como tempero de lotes.
A pisa tradicional feita em Portugal era feita em lagares de pedra – granito no Norte, mármore no sul ou, quando tal passou a ser possível, em lagares de cimento. No Douro, o tamanho dos lagares estava relacionado com o número de pipas que se podiam encher com o vinho que resultava da pisa. Procurava-se assim que houvesse uma relação directa para não haver desperdício. A inércia térmica que a pedra permite foi desde sempre um factor que ajudou à preferência da pedra sobre as dornas de madeira, para além da melhor higienização do material.
O termo “dinâmica do lagar” é especialmente caro a David Guimaraens, director de enologia do grupo Fladgate Partnership. David tem uma relação unívoca com o lagar, uma vez que só faz vinho do Porto e por isso todo o argumentário está relacionado com a produção do generoso. Essa dinâmica implica, segundo David, que as castas devem ser co-fermentadas para que as características positivas ou de debilidade de umas seja compensada, equilibrada, por outras. E há três ordens de razões: “por exemplo a Tinta Barroca é rica em antocianas mas pobre em taninos; se se faz a fermentação sozinha não tem taninos para fixar as antocianas; por isso convém estar ligada a outras; a Touriga Francesa tem pouco açúcar, casca rija e tende a gerar pouco álcool; ora o excesso de açúcar da Barroca entra aqui a compensar a Touriga Francesa que, ficando numa fermentação mais longa, acaba por extrair mais cor da película da Francesa; em segundo lugar há uma razão física, é o caso da Tinta Roriz que tem casca frágil e que se a prolongares muito no lagar fica tudo em papa; no entanto, se junta com a Touriga Francesa, fica muito mais equilibrada. Por fim há uma razão, diz-nos, organoléptica: em qualquer vinha velha as principais castas são Barroca, Tinta Roriz e Touriga Francesa; depois há as castas de tempero que não produzem muita cor mas que dão sabor e complexidade, como o Rufete, a Tinta Francisca e muitas outras. Se as vinificares sozinhas vais fazer um vinho palhete; é a combinação destas castas que traça o perfil de cada quinta de cada parcela e, em termos globais, de cada empresa. Elas têm de ser por isso misturadas na fermentação”.

Na Sovibor, o lagar não serve apenas os melhores tintos. Também os brancos de curtimenta são aqui feitos.

Vantagens e perigos

É assim que David espera que os vinhos da Quinta da Roeda (Croft) sejam bem diferentes dos da Quinta de Vargellas (Taylor’s) porque, exactamente, as castas de tempero de uma vinha são diferentes das da outra e assim o “carácter” da Roeda não é, nem se pretende que seja, igual ao de Vargellas; deste modo, “cada quinta tem a sua personalidade e o Vintage tem de ser feito com essas uvas e não com as que cheguem de outra propriedade”, confirmou. Também os vintages da Churchill, continuam a ser totalmente feitos em lagar com pisa a pé. A mecanização ainda ali não chegou, como constatámos na Quinta da Gricha, na visita guiada por Johnny Graham.
Vários enólogos também nos referiram este aspecto fundamental e que tira mais partido dos lagares: a co-fermentação. Paulo Nunes, (enólogo da Passarella e de outras quintas) diz-nos que o lagar tem vantagens e perigos: por um lado a co-fermentação é fundamental e por via dela o lote deverá ser feito no lagar em vez de ser na adega; dessa forma, consegue-se que castas mais débeis aromaticamente ou pouco ricas em polifenóis (caso da Jaen e Rufete) também sejam feitas em lagar se juntamente com outras. A maior área do lagar pode favorecer uma maior extracção e concentração, mas a fermentação tumultuosa é mais rápida e por isso tem de se ter todo o cuidado para evitar as oxidações. O método é, como vimos, retirar do lagar antes do final para que tudo resulte em maior equilíbrio. Paulo Nunes é também adepto do lagar mesmo para vinhos que se pretendem mais elegantes; “é o caso do Pai d’Aviz que é um bom exemplo de um vinho com menor extracção mas que também foi feito a lagar”. O excessivo contacto com o oxigénio pode ser um problema, por fazer subir a acidez volátil. E, como nos lembra Manuel Lobo (Crasto), a afinação dos tintos Douro faz-se sobretudo no último terço da fermentação e por isso é importante controlar esse período já em cuba. E conclui: “continuamos a achar que há vantagens em fazer o corte com o pé; o robot ajuda depois no baixar da manta mas pode mesmo compactar a massa no fundo do lagar e é preciso intervir para descompactar. Co-fermentação? “O mais possível, é melhor procurar fazer o lote final logo na fermentação!”.

Na Quinta das Bágeiras os altos lagares são trabalhados apenas com rodo de madeira.

Na Bairrada, a tradição impôs um estilo de lagar que pouco ou nada tem a ver com os do Douro: são muto mais altos e muito mais pequenos, próprios para serem trabalhados com maços de madeira.

Há lagares e lagares

Actualmente os termos “lagar” e “vinificação em lagar” podem querer dizer coisas muito distintas. Há lagares de granito, de cimento, de mármore e há lagares de inox que são a versão mais recente e que procura responder às carências de mão-de-obra (neste caso pé-de-obra…) para a pisa em lagar. Nas vinificações mais pequenas, podem mesmo ser utilizadas selhas de material sintético para fazer a pisa. Ao contrário do que se possa pensar, a aceitação do lagar como local de fermentação do mosto, também teve alguns críticos. Na Segunda Memoria sobre os Processos de Vinificação, (1868) o Visconde de Villa Maior chama a atenção para o facto do lagar, ainda que útil para o vinho do Douro, pela força sacarina das uvas, pode ser extremamente prejudicial para uvas de baixo potencial alcoólico, dos altos, das várzeas, “(…) e muito menos para a produção dos vinhos verdes e acidos dos tres districtos da provincia do Minho”. O mesmo autor é muito céptico no uso dos lagares para as uvas que têm pouco potencial alcoólico porque “Pela natureza do material, de que são construídos, não podem favorecer a conservação da temperatura necessaria a uma fermentação rapida e pouco demorada, que é sempre a melhor”. A alternativa era, defende o mesmo autor, a fermentação em balseiros, sobretudo se forem cobertos.
Actualmente são vários os aspectos a ter em conta e que mostram a diversidade do conceito de lagar. Estes podem ser usados como segue:
1. apenas corte das uvas no lagar seguida da fermentação em cuba onde se desenvolve e termina a fermentação;
2. corte e fermentação parcial no lagar, passando para a cuba apenas quando está perto de terminar o processo fermentativo;
3. corte e fermentação total no lagar até ao final;
4. fermentação no lagar sem pisa (ou quase sem pisa);
Mesmo seguindo o modelo referido em 3., há que saber se as uvas vão para o lagar com a totalidade do engaço, apenas com parte dele ou totalmente desengaçadas. Cada uma destas opções irá corresponder a produtos finais diferenciados e isso dá um pouco a medida da diversidade que o lagar permite. Actualmente os lagares são quase em exclusivo usados para os vinhos tintos. Digo quase porque na Sovibor (Borba) faz-se um branco de Antão Vaz – na linha Sem Amarras – em lagar, com a totalidade das películas; é um branco de curtimenta que António Ventura, enólogo da empresa, nos afirmou que “é uma réplica do que antigamente se fazia; essa é a razão e obtivemos um vinho que se afasta do perfil normal dos brancos que actualmente se fazem; no caso dos tintos Mamoré são feitos em lagar com pisa a pé duas vezes por dia porque o nível de finesse, complexidade e estrutura que se consegue no lagar não é replicável na cuba. As uvas vão desengaçadas para o lagar porque nunca temos a certeza da maturação dos engaços e para obter só aromas vegetais, não vale a pena. No branco, que também desengaçamos, pode levar uma pequena quantidade de engaço, para dar mais nervo”.
Na Quinta dos Murças (Douro), como nos disse José Luis Moreira da Silva (Director técnico do Esporão), não há excepções: todos os vinhos de todas as marcas são feitos em lagar com pisa; fermentam ali até final sem recurso a leveduras. Mais tradicional que isto era difícil.
No Douro houve mecanização, mas aproveitaram-se muitos lagares já existentes, como na Quinta do Bom Retiro, da Ramos Pinto, ou na Quinta do Noval. Nestes casos, replicados em cada vez maior número de quintas, o sistema dos pistons corre numa calha ao longo dos lagares e pás com silicone vão baixando a manta; o uso de silicone justifica-se porque desta forma se consegue algo aproximado ao pé humano e não se esmagam as grainhas contra o fundo do lagar.
Este foi o sistema adoptado pela família Symington mesmo para fazer os seus Vintage de topo. Todas as adegas estão equipadas com estes modelos robóticos – programáveis e que podem trabalhar dia e noite, descarregam por inclinação do próprio lagar e são facilmente higienizáveis. Só na Quinta do Vesúvio se optou por manter tudo como foi criado nos tempos de Dona Antónia Adelaide Ferreira: pisa a pé da totalidade das uvas e descarga por gravidade para os toneis que estão no andar de baixo. Mudanças? Sim, houve, mas como costumam dizer: a única diferença é que agora há electricidade para iluminar; tudo o resto se mantém como era!

Todas as adegas da família Symington estão equipadas com modelos robóticos – programáveis e que podem trabalhar dia e noite, descarregam por inclinação do próprio lagar e são facilmente higienizáveis.

Do inox ao lagar sem pisa

Os lagares modernos são de inox, muitas vezes redondos e com pás metálicas. David Guimaraens não tem dúvidas que “os lagares modernos podem gerar vinhos mais suaves, mais frutados e elegantes e, sobretudo, bebíveis mais novos mas, quando se pensa em Vintage, é a estrutura, a profundidade e a longevidade que se pretende e por isso nada substitui a pisa a pé.” António Ventura tende a concordar mas, no entanto, usa lagares robóticos em vários produtores do Tejo e entende que “mesmo nos de inox, os vinhos resultam com mais estrutura do que se forem feitos, como habitualmente em cubas de inox”.
Muito associado com o lagar está a preparação de um pé-de-cuba, algo que podemos apelidar de “alavanca fermentativa”, um fermento que ajuda ao arranque da fermentação no lagar. Previamente preparado pelo produtor, o pé-de-cuba corresponde a uma certa quantidade de uvas que começaram a fermentar e que é nesse estado fermentativo que se colocam no lagar para ajudar ao arranque de todo o processo. Outras práticas antigas iam desde a junção de fermento de padeiro até à inverosímil estória que uma vez ouvi de juntar toucinho gordo ao lagar e que, ao ser pisado, libertava “alimento” para as leveduras, favorecendo a fermentação. Histórias de outras épocas…
Já a quase ausência de pisa se verifica geralmente na Bairrada, onde a tradição impôs um estilo de lagar que pouco ou nada tem a ver com os do Douro. Lá abertos e muito grandes e na Bairrada mais altos e muito pequenos. Mário Sérgio Nuno (Quinta das Bágeiras) explica o uso: na região a tradição mais antiga era usar lagares feitos com tijolo “burro” (feito de barro maciço, tão vulgar na região) ou em cimento. No entanto recordou-nos que o cimento tem de ser tartarizado, pincelado com ácido tartárico e depois lavado para se poder colocar lá as uvas. O método é então como segue: uvas descarregadas no lagar com engaço total, “gastando-se o menos tempo possível entre a apanha e o descarregar”, faz-se uma pisa leve no 1º dia, durante uma meia hora, depois mexe-se a massa várias vezes por dia com um maço até que a fermentação arranque, normalmente ao segundo dia. No início usamos sulfuroso para proteger as uvas e ao segundo dia o processo começa; sempre sem leveduras adicionadas, “até hoje nunca usámos”. O dar mais ou menos com o maço depende do perfil que queremos, para vinhos mais estruturados (como o Garrafeira), damos mais, seis a sete vezes por dia. Brancos no lagar? Não temos tradição disso mas este ano fizemos uma experiência de branco no lagar com engaço total. No entanto tirámos do lagar uns dois dias antes de terminar a fermentação. Vamos ver, ainda é cedo para apreciações.”
Apesar de se manter muito fiel aos procedimentos antigos, Mário Sérgio já introduziu novidades, como o sistema de frio dentro dos lagares que permite uma fermentação mais suave e o uso de barricas para a fermentação de vinhos brancos e mesmo algumas bases de espumante. Pisa mecânica? Mário responde: “para a nossa dimensão não se justifica; aqui fazemos cerca de 30 000 litros por ano em lagar. É verdade que são 15 dias a trabalhar dia e noite, mas por enquanto não vemos necessidade. No futuro, logo se vê!”.

Na Quinta do Vesúvio, a tradição ainda é o que era.

Engaço sim, engaço não

Sobre o tema “engaço total” Mário Sérgio é peremptório: “todos os tintos das Bágeiras são com engaço; se estiver bem maduro o engaço contribui para mais profundidade nos vinhos; é verdade que quando chega a hora da desencuba é uma trabalheira porque tem de ser tudo à forquilha!” Num ponto todos os técnicos com quem falámos são unânimes: para vinhos destinados ao consumo rápido e que não estão pensados para vinhos de guarda, não faz qualquer sentido usar os engaços. Por outro lado, todos consideram que o final da fermentação deverá ser feito já em cuba ou em tonel. Deixar as uvas no lagar até que a fermentação termine é um risco porque com a diminuição da actividade das leveduras há também menos CO2 e criam-se por isso condições para que se desenvolvam oxidações e actividade de bactérias acéticas. As boas práticas aconselham então que o final seja feito em atmosfera protegida e, como nos disse Mário Sérgio, “lá fica mais uns 15 dias no tonel a acabar de fermentar. Essa foi uma regra que Rui Alves (antigo enólogo das Bágeiras) sempre me fez cumprir”.
A utilização ou não do engaço e se é parcial ou total, insere-se num conjunto de decisões que deverão, sempre, obedecer ao bom senso. Isso mesmo é defendido por Thomaz Vieira da Cruz no seu livro Viti, Vini,Vici, lançado recentemente. Como ali afirma “o engaço só tem interesse se estiver completamente castanho (lenhificado), pois é sinal de que o verdete se foi e os seus taninos estão menos agressivos. Mas só tem interesse adicionar no todo ou em parte se considerarmos que pode contribuir e completar algo a nível tânico à casta em questão. A intuição é importante para tomar esta decisão”. Como se viu, nas Bágeiras a regra vai além da intuição: as uvas vão sempre com o engaço total!
Lagares de cimento, lagares de granito, mas também lagares de mármore. Como se esperaria, em terras de pedreiras de mármore não havia razão para se fazer um lagar com outro material que não fosse este. É assim nos vinhos Dona Maria e também na adega de João Portugal Ramos, ambas em Estremoz. Na adega da quinta Dona Maria, a enóloga Sandra Gonçalves confirmou-nos que os tintos passam todos no lagar e “o mármore é uma pedra mais fria que o granito e a temperatura é mais fácil de controlar. Os lagares são de grande dimensão e isso é um ponto fraco porque é mais difícil de encher rapidamente com uvas para se iniciar o processo.” No entanto sabemos que a grande dimensão de um lagar gera uma fácil oxigenação, o que ajuda à estabilização da cor e dos taninos.
Também na adega de João Ramos, cerca de 60% dos tintos passam no lagar. Aqui é assumido que é o perfil que se quer nos vinhos que vai determinar o tempo e o trabalho de lagar que as uvas vão ter. João Maria, filho de João Ramos, diz-nos que o Estremus “é um tinto que sempre foi pensado para ser muito mais na linha da elegância e, por isso, as uvas, levam menos trabalho de pisa e remontagem, para haver menos maceração e assim se conseguir um vinho mais fino”.
Os lagares estão para durar e, como nos disse David Guimaraens, “enquanto tiver que fazer a vindima à mão, vou ter pessoas a apanhar as uvas e por isso terei sempre gente para a pisa.” Por enquanto, o assunto da vindima mecânica ainda não se coloca e não é adaptável à maioria das vinhas do Douro. Assim sendo “e enquanto for possível, vamos continuar a usar a pisa a pé para os nossos melhores vinhos”. É a vitória da tradição, dizemos nós.
Nos 12 vinhos que sugerimos para complementar esta peça, a partir das provas efectuadas pela Grandes Escolhas ao longo do último ano, incluí vinhos feitos em lagar mas com variados perfis: no caso dos vinhos do Porto temos um feito em lagar tradicional com pisa a pé (Fonseca Guimaraens), e outro feito em lagar com pisa mecânica (Graham’s); nos restantes procurei incluir vinhos de diversas regiões e ainda que a grande maioria sejam vinhos tintos, não quisemos deixar de incluir um branco do Alentejo. Prova que os lagares ainda deixam a sua marca um pouco por todo o país.

Na Quinta do Crasto, ainda que pisados no lagar, o último terço da fermentação dos tintos é sempre feito na adega moderna.

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