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Dantes era mais fácil

Nas provas cegas tudo se complica

A história tem uns bons 25 anos mas conta-se depressa e passou-se no tempo do escudo (época longínqua, a que só a alguns ainda diz qualquer coisa…). Estive envolvido na organização de uma prova de vinhos muito especial. Tão especial que nunca mais se repetiu. Ideia da prova: provar às cegas (sem saber o que se estava a provar) e dar um palpite sobre o preço do vinho, em prateleira. Na prática o que se pedia também era o «quanto é que estaria disposto a pagar por este vinho». Nos provadores tínhamos tudo: jornalistas, produtores, distribuidores, sommeliers, restauradores e donos de garrafeiras. Para analisar os resultados pediu-se apoio a um matemático que criou um modelo de análise que permitiu perceber e interpretar as diferenças entre o PVP real e o preço atribuído. A principal conclusão da prova agradou a todos: o vinho mais caro na prova (Reserva Especial Ferreirinha) foi também aquele que quase todos disseram que estavam dispostos a pagar mais. À época havia duas famílias de vinhos claramente identificáveis: os caros – muito poucos, na casa dos €20 actuais – e o resto do grupo, muito mais baratos, naturalmente com variações, mas todos abordáveis, pelo menos pelos presentes. Ora esta é uma prova que hoje seria muito complicada de fazer. Vejamos (e puxando pela memória): naquele tempo a diferença de preço entre um vinho bom e um excepcional seria de 1 para 5 ou 1 para 6. A preços actuais seria um bom vinho custar €8 e um excepcional €40. É aqui que tudo se complica porque hoje há vinhos muito caros no mercado mas em que a qualidade/originalidade não é perceptível em prova cega. Podem ser caros por várias razões: porque têm origem numa vinha que produz muito pouco, que não permite mecanização e que gera custos de produção caríssimos; porque tem origem numa casta quase desaparecida e ganha com isso um carácter de preservação do património; por uma infinidade de outras razões, sendo que uma delas é a vontade do produtor de «também ele» ter um vinho muito caro. Chegamos assim a um ponto em que, quem sabe, um vinho de €50 ou 100 na tal prova que agora se realizasse poderia ser considerado vinho de 10 ou 12. Há imensas razões para que um vinho tenha um preço alto mas nem sempre é óbvio, para quem prova, a razão intrínseca de tal preço. Há vinhos que precisam de ser explicados e contextualizados para que possam ser percebidos e não podem ser provados em prova cega como também não devem ser enviados para concursos. Tudo o que não for mais ou menos óbvio tem de ser deixado de lado para ser muito bem explicadinho. Curiosamente tenho para mim que se a prova fosse hoje e lá estivesse o Reserva Especial voltaria a ser muito bem considerado. A mesma certeza já não tenho em relação a vinhos originais e difíceis (como os dos Açores), os que são feitos por processos especiais (ânforas, talhas, vinhos de flor, etc) e os que são caros porque a vinha produz pouco ou tem de ser cavada à enxada. No entanto, organizando por 3 ou 4 grupos de preços, esta é uma prova muito curiosa de ser feita. É ao consumidor que cabe a palavra final: se compra um vinho muito caro e depois compra segunda e terceira vez, aí estou tentado a dizer que o vinho vale o preço.

Sugestões da semana:
(Os preços foram indicados pelos produtores)

Quinta da Alorna Reserva das Pedras branco 2018
Região: DOC do Tejo
Produtor: Quinta da Alorna
Casta: Fernão Pires
Enologia: Martta Simões
PVP: €19,99
O nome identifica a parcela onde a vinha está instalada, cheia de calhaus rolados. Esta é a primeira edição deste vinho (8000 garrafas). Fermentou em barrica nova e usada. A próxima edição será da colheita de 2021.
Dica: muito bem conseguido, com a barrica ainda bem presente mas com grande volume a harmonia de boca, com grande foco na acidez. Desafiante à mesa.

Quinta da Fonte Souto Alfrocheiro tinto 2019
Região: Portalegre
Produtor: Quinta da Fonte Souto (Symington)
Casta: Alfrocheiro
Enologia: equipa dirigida por Charles Symington
PVP: €19,90
A casta mostrou-se muito bem nesta propriedade da serra de São Mamede e justificou ser comercializada como varietal. Cerca de 80% do vinho estagiou em madeira usada, o restante em inox.
Dica: enorme frescura aromática, com notas de cereja e alguns químicos. Muito gastronómico, elegante, directo. Tudo muito bem conseguido.

Vinha da Migalha tinto 2016
Região: Douro
Produtor: 5 Bagos
Casta: vinhas velhas com castas misturadas
Enologia: Carlos Magalhães
PVP: €80
Tem origem na zona de Foz Côa, numa vinha onde foi possível vindimar separadamente as brancas e as tintas. Daí haver dois vinhos com este nome. Produzidas 1240 garrafas. O vinho estagiou 3 anos em barrica usada e dois em garrafa.
Dica: misterioso, delicado no aroma, elegante, todo ele com memórias olfactivas de outros tempos. A provar com atenção.

 

 

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