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Os negócios dos milhões

Qualidade em quantidade?

Esta semana resolvi abordar um tema que costuma gerar controvérsia abundante, nomeadamente entre os enófilos. Muitos deles entendem que os grandes vinhos são sempre resultado de pequenas produções e, vinhos feitos em grande quantidade, são sinónimo de vulgaridade. Em Bordéus dizem-nos que não é verdade, as grandes marcas produzem-se às centenas de milhar. Numa abordagem mais venenosa até se diz que os vinhos dos milhões, são verdadeiros caldos Knorr: abre-se a caixinha dos produtos enológicos e vai de encher as cubas com leveduras aromáticas, enzimas, taninos enológicos, ácido tartárico, aparas de madeira e, claro, os tenebrosos sulfitos. Neste conceito, no final, não sobra nada, nem da região de onde vieram as uvas, nem das castas, nem o vinho tem alma ou carácter. Relembremos: pode ser fácil fazer um grande vinho de 1000, 2000 ou mesmo 5000 garrafas mas, mesmo difícil, é fazer um bom vinho de um milhão de exemplares. Foi essa ideia que me levou esta semana ao supermercado, neste caso o Continente, para comprar vinhos tintos de produção – indicada aqui à frente de cada vinho – superior a um milhão. Fazer vinhos com milhões de exemplares não permite nem fantasias, nem poesia, nem risco, seja ele grande ou pequeno. E se pensarmos que estes são os vinhos que os consumidores de facto compram, é muito «diletantismo anti-sistema» vir dizer que são vinhos desprezíveis porque feitos em grande quantidade. Estes são as apostas que os consumidores têm como âncora, não enganam, não falham, acompanham bem a refeição e, na próxima vez que comprar, o consumidor sabe o que vai encontrar. É verdade que estes vinhos têm uma forte componente técnica, estão preparados para resistir a tudo, em geral não requerem decantação e nada lhes acontece depois de estarem engarrafados. São vinhos que nos ficam na memória? Não! São vinhos que queremos guardar longamente na nossa garrafeira? Não! Estes são os vinhos em que todas as componentes foram pensadas para estarem em harmonia, da acidez aos taninos, do aroma à cor. E, não esqueçamos, o vinho é um negócio e não uma via-sacra, um vale de lágrimas onde se está apenas para sofrer «às mãos da maldita natureza». E vamos lá a responder à pergunta: que produtor descartaria a hipótese de vender 2 milhões de garrafas a um PVP de €7,49? Provei 9 e destaquei 3 na selecção da semana. Do Dão, o Cabriz 18, €4,99 (1,55 milhões), aberto na cor, fruta com leve doçura, ligeiro; do Alentejo, Porta da Ravessa 20, €2,99 (4 milhões), aberto na cor, fruta atractiva, macio e gastronómico; Pêra Doce Premium 18, €3,99 (1,58 milhões), muito bem na cor, nos aromas quentes da planície, macio no palato; EA 19, €3,99 (2 milhões), simples, correcto na boca mas a carecer de mais carácter; de Setúbal JP 20, €2,99 (6 milhões), simples no aroma, sem história no palato mas porta-se bem à mesa e Periquita 19, €4,99 (1,4 milhões), aberto na cor, simples na boca, sem segredos. Inspirado no poeta Aleixo, diria: estes são os vinhos e é com estes tintos uns que eu vejo neste mundo vinhos simples, onde outros, um tanto apressadamente, não vêem vinhos nenhuns…

Sugestões da semana:
(Os preços referem-se ao hipermercado Continente)

Papa Figos tinto 2019
Região: Douro
Produtor: Sogrape Vinhos
Castas: Tinta Roriz, Tinta Barroca, Touriga Francesa e Touriga Nacional
Enologia: equipa dirigida por Luis Sottomayor
PVP: €7,49
O vinho estagia em inox e cimento. Antes do engarrafamento é levemente colado e filtrado. Segundo o produtor, pode viver bem em cave por vários anos. Dois milhões de garrafas.
Dica: um Douro bem atractivo, muito polido, com prova de boca de grande qualidade e sem ceder, quer na estrutura aroma/sabor, quer na fidelidade à região de origem.

Monte Velho tinto 2020
Região: Reg. Alentejano
Produtor: Esporão
Castas: Aragonez, Trincadeira, Touriga Nacional e Syrah
Enologia: Sandra Alves/David Baverstock
PVP: €5,49
Verão muito quente com vindima antecipada. O vinho fermentou em inox e estagiou na cuba 3 meses antes do engarrafamento. Apenas usa uvas próprias. Seis milhões de garrafas.
Dica: bom representante alentejano (cor, aroma), a que alguma doçura na boca nada acrescenta. Conjunto muito bem proporcionado.

Dona Ermelinda tinto 2020
Região: Palmela
Produtor: Casa Ermelinda Freitas
Castas: base Castelão acrescido de Cabernet Sauvignon e Touriga Nacional
Enologia: Jaime Quendera
PVP: €5,29
Tem origem nos terrenos de areia de Fenando Pó, tem 14% de teor alcoólico e é uma das marcas-bandeira deste produtor. Produção de 1,583 milhões de garrafas.
Dica: polido no aroma, com fruta vermelha e leves notas apimentadas que lhe dão algum carácter. Gastronómico.

 

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