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Macroscópio – Nos 30 anos de uma aventura

Escrevo esta crónica em Janeiro para ser publicada no mês seguinte. O normal, portanto. Mas em Janeiro comemoro uma data especial. Faz este mês 30 anos que escrevi a minha primeira crónica sobre temas de vinhos no O Jornal/Vinhos, suplemento mensal do semanário O Jornal. Foi então um começo tímido de um trajecto que, felizmente, não teve interrupção e que continua “até que a mão me doa de tanto escrever”.

Essa crónica, que publiquei no meu primeiro volume das Histórias com vinho e outros condimentos, inseria-se numa coluna com um nome um pouco pomposo, posto na altura pelo José Salvador – Tribuna do Enófilo -, espécie de púlpito onde se dava voz a quem quisesse escrever, fosse consumidor, enólogo ou outro. Eu ainda a escrevi em máquina antiga que herdei do meu pai (e que conservo em perfeito estado), com teclado HCESAR, informação que pouco ou nada diz às novas gerações. Os enólogos também teriam direito à Tribuna do Enólogo mas poucos eram dados à escrita. Eram profissionais que estavam então a mostrar-se ao público; deixaram de ser apenas os “técnicos”, nome que habitualmente se ouvia nas empresas e cooperativas, passaram a ter nome e rosto e, mais importante, passaram a assinar os vinhos. Pode-se questionar se se justifica mesmo saber quem está por trás do vinho quando pensamos que, em relação a grandes marcas, tal nome nos é desconhecido. Alguém tem na ponta da língua o nome do enólogo do Château Latour ou Palmer? Será que o nome é mesmo o mais importante? Na altura, e estávamos em 1989, era mesmo, porque o sector estava a iniciar uma grande renovação, para não dizer mesmo revolução e as novas ideias e técnicas, os novos equipamentos, os novos plantios e as novas castas estavam a marcar o compasso e, nesta nova orquestra, o maestro era figura fundamental, alguém com sólida formação técnica e académica, com viagens e “mundo” suficientes e, assim, capaz de enfrentar os novos tempos. Foi então que o público se familiarizou com a figura até então desconhecida (ainda que não fosse propriamente uma novidade) do “enólogo consultor” que apoiava tecnicamente vários produtores, que assinava os vinhos e dava a cara por eles. Já tinham existido figuras de enólogos consultores, como o Engº Manuel Vieira que, de Carcavelos a Setúbal e de Bucelas até Reguengos dava apoio a produtores muito diferenciados. Mas agora falava-se de João Portugal Ramos, António Ventura, João Melícias, entre outros.
Começavam também, desde meados dos anos 80, a surgir os novos produtores-engarrafadores e muitos traziam consigo a marca da modernidade; nos primeiros podemos apontar o bairradino Luis Pato e, nos Verdes, Casa de Sezim, Paço d’Anha e da Tapada. Luis Pato – sempre atento ao que se fazia lá fora – terá sido o primeiro produtor a promover um encontro com a comunicação social para mostrar as novidades e, como o sector específico dos vinhos era muito limitado, encontrávamos nesses jantares jornalistas generalistas da rádio e televisão que assim se foram entusiasmando com o tema. A modernidade, essa, chegou quase sempre pelo génio criativo de António Francisco Avillez, então dono da J.P. Vinhos. Ali estavam já a trabalhar Filipa Tomaz da Costa e Peter Bright e daquela empresa saíram verdadeiras pérolas que foram espantosos fenómenos de marketing. Foi o caso do vinho João Pires, um branco de moscatel, seco – algo inédito até então – e que, beneficiando de uma magnífica apresentação, se tornou um enorme sucesso, nomeadamente em Inglaterra. Os portugueses nunca lhe deram o crédito que merecia porque se dizia que era “vinho para senhoras” porque era doce e tal e coisa. Na verdade não era e era vinho de muito maior longevidade do que se poderia imaginar, como constatei 20 anos mais tarde, quando uma garrafa mal conservada e que trouxe dos fundos da cave, me deixou boquiaberto. A fazer companhia ao João Pires estavam o Cova da Ursa, o primeiro branco fermentado em barrica, o Quinta da Bacalhôa, o primeiro Claret a sério que tivemos, o Má Partilha, o primeiro imitador de Pomerol que conhecemos cá. De Azeitão não paravam de sair novidades, numa época em que do Douro poucas notícias havia, para além dos clássicos e do Alentejo eram também muito poucos os novos projectos, começando então a ter algum destaque os vinhos Cartuxa, sobretudo os tintos.

O IVV e as classificações

À época ainda permanecia uma prática que, com o surgimento das Comissões Vitivinícolas, acabou por se perder. Refiro-me à classificação das colheitas das várias regiões, dadas pela Câmara de Provadores do IVV, entidade que até então tinha a obrigação da prova e certificação dos vinhos. Estava assim habilitada a aquilatar da qualidade das diversas colheitas. Anualmente surgiam essas classificações da colheita – creio que numa escala de 1 a 10 – e a bronca estoirou quando se tratou de classificar a colheita de 1988. O ano tinha corrido mal, tinha havido acidentes climáticos, com muito desavinho, e a produção foi muito, mas mesmo muito baixa. Este é o ponto interessante porque, ao invés da quantidade, a qualidade foi extraordinária, nomeadamente numa região que tinha então grande fama e aceitação juntos dos consumidores – a Bairrada. O IVV resolveu não atribuir classificação ao ano de 1988, como que a dizer (numa leitura possível por parte do consumidor) que tinha sido mau de mais para ser classificado. Escusado será dizer que a bronca estoirou e o José Salvador, sempre adepto de uma boa razão para se pegar com as instituições, desancou o IVV de todas as formas, escreveu o que ninguém queria ler sobre a incompetência e a falta de critério da Câmara de Provadores, então liderada por Pontes Fernandes. Aquele tipo de classificação de colheitas era, e é, ainda vulgar em França mas entre nós, com a variação de qualidade de trabalho dos produtores de cada região – e convém não esquecer o peso esmagador que então tinham as adegas cooperativas – a classificação de uma região como um todo pecava sempre por incorrecta e desfasada da realidade.
À época ainda se realizavam os concursos de vinho na produção, promovidos exactamente pelo IVV. Não tinham qualquer interesse para o consumidor porque saber que o vinho do produtor José da Silva de Palmela ou o António Marques de Almeirim ou o Manel Baixinho do Cartaxo tinham ficado bem classificados não servia para nada porque o mais habitual era esses vinhos (ainda não engarrafados) acabarem em lotes de empresas armazenistas (e havia muitas) que compravam aqui e ali e depois comercializavam com marca própria. Na lista dos premiados surgiam muitos produtores da região de Setúbal mas os nomes eram, e continuaram a ser, desconhecidos. O concurso era assim como que inútil, apenas servindo para sugerir opções de compra aos armazenistas.
Imprensa da especialidade era algo novo. O Jornal/Vinhos tinha sido criado por António Lopes Vieira que posteriormente ingressou na Vinalda e ainda na José Maria da Fonseca e tinha estado mais de um ano em lume brando, sem orientação ou colaboradores. Foi precisamente em Janeiro de 1989 que ressurgiu. O Expresso tinha tido uma coluna de opinião assinada pelo José Salvador e no Diário de Notícias escrevia José Estevão. Assunto encerrado. Lá para o fim do ano de 89, Luis Lopes teve uma epifania e criou a Revista de Vinhos. Em época pré-Internet em que as opiniões não escritas não tinham onde se expressar era tudo o que se conseguia arranjar. E para falarmos uns com os outros tinha de ser pelo telefone fixo que os primeiros móveis só surgiram bem dentro da década de 90. E não é que se conseguia viver?

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