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Milagres com vinho azedo

O vinagre é hoje nosso companheiro da mesa mas já foi usado como curativo e mesmo, se misturado com água, para matar a sede em climas muito quentes. Pode ser de vinho – o verdadeiro vinagre – ou pode ser elaborado a partir de frutos que, após serem fermentados, produzam álcool. São vinagres de outro tipo, alguns deles viraram famosos. E para amaciar o cabelo, já conhecia a receita?

O que seria da nossa “cabidela de galo do campo”, dos escabeches ou do nosso molho de vinagrete de que tanto gostamos para servir com petiscos variados, sem um vinagre que lhe dê o toque ácido e amargo? Este produto é, de há séculos, usado na culinária. E com razão, uma vez que é um complemento de saladas, um conservante (como no caso dos pickles) e um ingrediente que, como nos lembra o Chefe Vitor Sobral, “abre o aroma e torna o cozinhado mais vivo”. A alta acidez (medida em ácido acético) sugere, no entanto, que tem de ser usado com parcimónia e “mão” cuidadosa, a fim de evitar que se estrague o cozinhado. Os usos foram, ao longo da história, muito diversificados, desde desinfectante até tónico revigorante mas ainda nos anos 60, e quando não existiam amaciadores para o cabelo era vulgar usar uma cafeteira de água bem quente à qual se adicionava vinagre (sem medida rigorosa) e no final da lavagem passava-se aquela água no cabelo para o amaciar. Resultados? Magníficos, ao que nos dizem hoje as meninas de outrora…
A produção do vinagre sempre foi um complemento da produção de vinho. Por essa razão o produtor deixava o vinho que tinha azedado lá bem ao fundo da adega (quanto mais longe dos vinhos saudáveis, melhor) e esperava que dali saísse um bom vinagre. E quando estava feito tirava parte do vinagre da barrica juntando nova dose de vinho mais novo. Assim se ia reproduzindo o modelo e obtinha-se o que hoje se chama “vinagre natural de vinho”, algo que os consumidores conhecem mal mas que está a renascer entre nós.
Diziam os antigos que o caminho natural de um vinho, se não for acompanhado, é transformar-se em vinagre. Acrescentavam também que, uma vez vinagre, nunca voltaria a ser vinho. As bactérias acéticas estão presentes nas adegas e não descuram qualquer oportunidade de se intrometer nos processos de fabrico do vinho. Por isso a atenção é total e hoje em dia a protecção é a palavra de ordem: protecção do mosto, protecção do vinho feito, protecção das barricas. A melhor maneira de fazer esta protecção é assegurando a ausência de oxigénio (sem ele as bactérias não trabalham) e a utilização de sulfuroso.
Desde sempre associámos vinagre a um produto que tem como base o vinho mas actualmente a lei prevê que se possam fazer, por exemplo, vinagres de fruta – o mais conhecido será o de maçã (cidra) – mas também os há de arroz. No mercado nacional há variados tipos de vinagre, alguns que fomos experimentar.
Para ser vinagre e poder ser vendido como tal ao público, temos de estar perante um produto com mínimo de 6º de ácido acético e 1,5º de álcool por desdobrar. Isto pode ser feito industrialmente ou de forma natural. O problema é que, se formos pela via “natural”, vamos perceber que as bactérias acéticas são muito lentas no trabalho e, em média e por ano, só desdobram um grau de álcool em ácido acético. Vamos então, por exemplo, falar de um vinho-base com 13,5º de álcool que vai demorar 12 anos a desdobrar os 12º que se querem transformados para que no final fique com 1,5º de álcool por desdobrar. Se estivermos a falar de vinagre de vinhos generosos, tudo se complica, em virtude do alto teor de álcool que esses vinhos têm.

Vinagre natural, um trabalho de paciência

A palavra “natural” associada a um vinagre de vinho significa que o processo de acetificação se operou naturalmente, sem adição de ácido acético. A palavra “paciência” é aqui usada porque este vinagre demora muito tempo a ser produzido. A trabalhar nesta modalidade, e com vinagres no mercado, destacam-se os de Moura Alves, Quinta das Bágeiras e Quinta da Pedreira. São todos feitos na região bairradina e orientados por Rui Moura Alves que há já várias décadas iniciou este processo, mantendo activa uma vinagreira onde muitos milhares de litros se vão, lenta (mas mesmo…) muito lentamente, transformando em vinagre. Estes vinagres bairradinos também se apresentam em pequenas embalagens de spray, muito úteis para temperar saladas, por exemplo.
Idealmente uma vinagreira é um local arejado, protegido da incidência directa do sol mas sujeito às variações de temperatura e humidade ao longo do ano. Por baixo de um telheiro e com chão em terra batida e já não precisamos de mais.
O método não sugere nem grandes requisitos nem é propriamente uma ciência oculta: usam-se vinhos sãos, colocam-se em barricas. Estes cascos, novos ou usados, podem ter tamanhos diferentes e terem sido previamente usados quer para vinhos quer para aguardentes vínicas. Não se devem usar barricas que tenham servido a aguardente bagaceira porque o vinagre irá sempre manter aquele aroma forte do bagaço. Adiciona-se então ao vinho a “mãe” que mais não é que um concentrado de bactérias, e deixa-se a barrica com espaço para que exista oxigénio, algo indispensável para a sobrevivência e trabalho das bactérias acéticas. Depois é esperar mas, durante esses anos de espera, é conveniente ir fazendo análises para se aquilatar do avanço do processo, ou seja, ir percebendo se a transformação do álcool em acético está a progredir. Se não estiver e se as análises mostrarem que nada aconteceu e o teor acético está na mesma, é provável que sejam necessários ajustes na “mãe” (poderá precisar de levar mais) ou na renovação do oxigénio da barrica. Estas análises não se fazem em casa mas há laboratórios que as fazem (o próprio Rui Moura Alves dirige um destes laboratórios na Bairrada). Mas não há que ter pressa uma vez que só após uns 4 anos de estágio é que é caso para se fazerem análises. Falamos aqui em barrica mas todo o processo se pode desenrolar num garrafão de vidro, preferencialmente de 10 litros. O mais indicado é que se vão juntando restos de vinho em garrafões como os de água mineral e, quando tivermos a quantidade necessária, juntamos tudo de uma vez no tal recipiente de 10 litros que vamos, como se disse atrás, encher até ao equivalente a 8 litros, deixando o espaço para o oxigénio. Este é o método mais aconselhável porque se iniciamos o processo com pouco vinho, sempre que juntarmos mais vinho estamos a atrasar a acetificação. Quando, pela análise, se considerar que já desdobrou em acético tudo o que era suposto, o vinagre deve apresentar um bom aroma (muito diferente do chamado “vinho azedo”) e então, antes de ser engarrafado, tem de se adicionar o sulfuroso – 60 miligramas por litro – para interromper o processo de acetificação e matar as bactérias que ainda estejam activas. Antes da adição de sulfuroso deve-se retirar algum vinagre que pode assim servir de “mãe” para uma nova produção. Sem sulfuroso, mesmo engarrafado, o processo continuaria e transformar-se-ia em água. Este é o método mais lento, mais tradicional e que produz melhores resultados e, segundo Moura Alves, “são os últimos graus de álcool a serem desdobrados que conferem os aromas mais subtis e complexos ao vinagre”.
Podemos ainda referir outros dois métodos: um deles consiste em baixar o teor alcoólico do vinho-base adicionando água e fazendo com que o tempo de acetificação se diminua substancialmente. É um dos métodos usados quando se lida com vinhos generosos; o outro é o método mais vulgar (industrial) e que corresponde a praticamente todos os vinagres disponíveis no mercado. Este é apenas um exemplo: junta-se água (90 litros) ao vinho (10 litros) e adiciona-se ácido acético na quantidade necessária para que no final fique com 6º de ácido acético. Poucos dias depois temos vinagre. Alguns produtores optam por, seguidamente, dar a este vinagre um estágio em barrica (no caso do vinagre Oliveira Ramos esse estágio prolonga-se por vários anos), pretendendo-se que, desta forma, a madeira possa conferir alguma complexidade. Este é um bom produto que nasceu de um Colheita Tardia da região do Tejo que azedou e que, apesar de industrial, ficou com boas características. Nos vinagres industriais nunca deixa de se sentir o acético de forma agressiva e muito pouco “natural”.

Balsâmicos e de outras origens

O vinagre balsâmico de Modena, originário da região italiana de Emilia-Romagna, é um produto luxuoso, uma verdadeira iguaria. Feito a partir de mosto de uva que foi inicialmente fervido para se concentrar, é depois longamente estagiado. As variedades de uva autorizadas são a Trebbiano e Lambrusco. O melhor é vendido em embalagens de 100 ml, pode atingir preços que rondam os €200 por garrafa, sobretudo os que têm indicação de idade. Tendo isto em mente percebe-se facilmente que o que se encontra no mercado a meia dúzia de euros não é mais do de um vinagre industrial carregado de caramelo para ficar escuro. É usável mas não se deve é pensar que “aquilo” é um bom representante do autêntico balsâmico de Modena. O verdadeiro demora cerca de 12 anos a ser feito, envelhece em barricas de várias madeiras, cada vez mais pequenas, acabando em pequenas unidades de 10 litros. Tradicionalmente o número de barricas varia entre 5 e 10, da maior para a mais pequena. Ao conjunto destas barricas chamam os italianos batteria. Quando pronto este aceto apresenta uma viscosidade que lembra um xarope e usa-se às gotas. Gastronomicamente é um sucesso se num naco de queijo parmesão se colocarem duas gotas deste aceto balsamico tradizionale. Uma ligação e tanto! O verdadeiro tradizionale (DOP), não representará actualmente mais de 0,01% de tudo o que se comercializa com o nome de Aceto Balsamico de Modena.
Em França resultaram muito conhecidos os vinagres de maçã (cidra) e os de vinho branco aromatizado com estragão. Ambos são largamente utilizados na culinária gaulesa.
Muito famosos no mundo são os vinagres de Jerez, disponíveis em muitos mercados. Envelhecidos pelo sistema de solera merecem especial referência os feitos a partir de vinho Pedro Ximenez, a variedade mais doce que existe em Jerez, chegando a atingir os 800 gramas de açúcar por litro. Estes vinagres (atenção àquele que o Corte Inglés tem, de marca própria) são muito aromáticos e lembram um velho generoso avinagrado, tendo por isso pontos de contacto com um Porto velho.
Mais recentes no mercado nacional são os vinagres de arroz. São um produto diferente dos vinagres de vinho, feitos a partir de saké, finos de aroma e não muito agressivos. São usados na elaboração do arroz para o sushi e noutros preparados da culinária japonesa.
Surgiram há poucos meses entre nós os primeiros vinagres de Vinho do Porto e de Vinho da Madeira. A actual legislação obriga a que o vinho base tenha sido previamente certificado e, no caso do Instituto dos Vinhos do Douro e Porto (IVDP), todo o processo é acompanhado, passando inclusivamente por prova final antes de ser embalado. Bento Amaral, que preside à Câmara de Provadores do IVDP, disse ao EXPRESSO que há já várias empresas interessadas neste negócio mas, por enquanto apenas uma delas produziu, tendo entregue a comercialização à marca Gallo. Pode-se dizer que haverá ainda ajustes legislativos e harmonizações com a legislação europeia para que se venha a ter no mercado produtos de elevada qualidade. Após a prova dos dois tipos (Porto e Madeira) a conclusão é óbvia: há ainda muito caminho a percorrer até se chegar a um vinagre digno de nota. Tanto num caso como noutro a referência – olfactiva e gustativa – ao vinho base que esteve na origem do vinagre é quase imperceptível.

Vinagre caseiro?

Para se fazer vinagre em casa não basta deixar um garrafão com restos de vinhos e esperar. O processo não é complicado mas será conveniente cumprir alguns passos para que o resultado seja bom. Ficamos aqui com algumas regras a cumprir e erros a evitar.

Como fazer?

1. Vá guardando restos de vinhos em embalagens de plástico alimentar (têm um símbolo gravado), tipo garrafões de água ou outros com símbolo idêntico;
2. Pode juntar todo o tipo de vinhos mas, se incluir muitos vinhos generosos, a acetificação natural levará muito mais tempo porque mais álcool significa maior lentidão no processo;
3. Para o trabalho das bactérias é indispensável a presença de oxigénio. Assim, numa embalagem de 10 litros deverá ser deixado por preencher um espaço equivalente a cerca de 2 litros. O melhor vasilhame é sempre a barrica (de 50 l, por exemplo), que pode ser nova ou usada. Se for usada veja bem se não tem cheiros de mofo. Pode ser barrica que tenha sido usada para aguardente vínica, não de bagaceira;
4. A “mãe” é um concentrado de bactérias acéticas que se obtém na fase final da produção de vinagre. Meio litro de “mãe” chega para uma barrica de 50 litros. Na falta do concentrado, o processo é possível mas bem mais lento;
5. Quando o vinagre estiver pronto tem de se adicionar sulfuroso (60 miligramas por cada litro). É desta forma que se interrompe o processo de acitificação. Sem sulfuroso as bactérias continuarão a actuar mesmo num frasco e acabarão por desdobrar o resto do álcool. Como o produto final deve sempre ficar com 1,5º de álcool por desdobrar, é indispensável aquela adição;
6. Por lei o vinagre tem de ter 6º de ácido acético mas, na forma natural pode facilmente atingir 10º ou mesmo mais. Não tem qualquer problema, apenas irá usar menos quantidade porque é mais concentrado.

Erros que se deverão evitar:

1. Guarda de restos em embalagens de plástico não alimentar. Bidons de plástico e jerricans sem aquela característica irão originar um vinagre com cheiros muito defeituosos, nomeadamente o cheiro a plástico e cola de contacto, resultado da acção das bactérias acéticas sobre o plástico. Se já tem restos de vinhos azedos em embalagens deste tipo só há um conselho: deitar tudo fora e começar de novo;
2. Uso de vinhos (nomeadamente brancos e tintos) muito novos. A presença de sulfuroso no vinho irá inibir o trabalho das bactérias acéticas. Como com o tempo o sulfuroso se combina com o vinho é preferível usar vinhos já com algum tempo de garrafa. Um ano de vida pode uma indicação média mas não é regra absoluta. Se tiver vinhos novos que quer usar para vinagre, deixe-os num garrafão apenas meio cheio uma vez que com a oxidação o sulfuroso irá, ao fim de poucos meses, combinar-se com o vinho.
3. Vinhos com defeitos – rolha, mofo, bafio – nunca darão um bom vinagre. Restos deste tipo de vinhos (ou a garrafa toda) deverão ser inutilizados;
4. Vinhos muito bons (e caros) não originarão necessariamente um vinagre extraordinário. Por isso não há que hesitar em juntar vinhos de todo o tipo;
5. O vinagre não tem de ser tinto. Pode ser branco, pode ser feito, por exemplo, só de espumantes, pode ser de vinhos generosos;
6. Um vinagre natural de vinho requer tempo e paciência. É escusado pensar que se consegue rapidamente o que demora anos a fazer;
7. Não se pode “abandonar” o vinagre. Periodicamente têm se ser feitas análises para se ver a evolução do desdobramento do álcool em acético e determinar o momento em que se pára o processo.

(JPM)

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