Foi há já duas décadas que o Expresso publicou, na revista Única, uma reportagem sobre…
Dois Dedos de Conversa – Dez 2000 A ANGÚSTIA DO ENÓFILO ANTES DO NATAL
Revista de Vinhos
(Apesar de terem passado 17 anos sobre esta crónica inserida na rúbrica Dois dedos de Conversa, ela continua muito actual e mais ainda nesta quadra.
Ai, ai, quem sofre eu sei quem é…)
Estamos a poucos dias da consoada. Quer isto dizer que nos encontramos à beira de um ataque de nervos…
Parece que já estou a ouvi-lo: “olha lá, tu que tens a mania que percebes disto, vê lá que vinho é que vais servir no Natal!” Infelizmente a cena repete-se ano após ano. E, para mim, o maior problema, é que não sei mesmo o que é que vou servir na ceia. Como tenho várias festividades natalícias e todas elas com mais de duas dúzias de pessoas, vivo num dilema terrível que se aguça nesta época do ano: como é que vou conjugar a minha garrafeira com tanta gente que, de vinho, só sabe distinguir se é branco ou tinto? Talvez esteja a ser injusto! A pregação que tenho vindo a fazer nos últimos anos tem dado frutos e, nestes grupos, já há um núcleo duro para quem Vintage se discute à data da colheita, à vinha de onde as uvas provêm, às técnicas de lagar empregues e à mãozinha do enólogo respectivo. Felizmente já tenho parceiros para discussões de castas, clones, porta enxertos e outros assuntos transcendentes. A questão é saber como é que traço a bissectriz do ângulo das várias sensibilidades e como é que chego ao resultado da equação a montes de incógnitas que são as famílias grandes.
Uma escolha difícil
As dificuldades do enófilo são múltiplas e começam muito antes do Natal. A primeira delas tem logo a ver com o menu. Há famílias onde não se muda uma vírgula à ementa, pelo menos desde o século dezanove, ou seja, come-se o bacalhau na véspera, com montes de couves e batatas, tudo a nadar em azeite e, no propriamente dito dia de Natal, ao almoço serve-se a ave mais imbecil (do ponto de vista gastronómico) que existe à venda no mercado: peru! Este bicho tem algumas utilidades mas a mais infeliz de todas é exactamente aquela a que está condenado nesta época: ser assado no forno, dando origem a uma coisa em modos de assim, completamente desenxabida, sem virtudes ou sabores que mereçam duas linhas em qualquer enciclopédia de gastronomia. Valha-nos a imaginação para fazer um recheio que confira ao bicho alguma graça. Lá iremos. Então temos, para já, o assunto do bacalhau para resolver. Tratando-se de um jantar, vai com certeza haver montes de sobrinhos aos berros, desesperados porque nunca mais chega a hora das prendas. Com sorte, haverá bebés a quem é preciso mudar fraldas, outros menos bebés que, ao mínimo descuido, se agarram à toalha de mesa para se porem em pé e puxam tudo o que lá está em cima para o meio do chão; sem sorte (mas frequentemente) vão encontrar-se também alguns irmãos que apenas se cruzam neste dia do ano e que não morrem propriamente de amores uns pelos outros (por via, claro está, do ódio que os respectivos cônjuges nutrem uns pelos outros…). Com este quadro familiar em que se pretende que todos tenham o sorriso Pepsodent mesmo que seja tudo mentira, ao enófilo cabe a tarefa de seleccionar os vinhos. Miséria! Abre-se a garrafeira e pensa-se: deste só tenho uma garrafa e é logo para estes trastes que a vou abrir? Nem pensar! Lá se descobrem umas quantas marcas com alguns exemplares. Pensamos: bem, talvez isto não vá mal com o bacalhau, mas logo de seguida imaginamos os comentários. De um lado um “bravo”, vindo do sector onde temos mais amigos e adeptos incondicionais. Mas não perdemos pela demora, porque logo de seguida o sector mais crítico não perdoa: o quê? Esta m. com bacalhau? Então com isto não se devia beber tinto? Para evitar dissabores e o espicaçar dos ódios acumulados (que também não está previsto sejam resolvidos na noite de Natal), é mais ajuizado servir vários tipos de vinho.
Escolha uns brancos de Inverno, daqueles um pouco mais encorpados, fermentados em madeira e sirva-os à temperatura certa (12/13º).
Atenção às lareiras e aquecedores que, num instante, farão subir a temperatura do vinho. Ao lado dos brancos ponha também alguns tintos. Esqueça as grandes marcas, as grandes referências que tem em cave. Esqueça as grandes garrafas mas não as garrafas grandes, já que o Natal é uma excelente altura para se ver livre de algumas garrafas magnum que tem em casa e que não sabia bem quando é que as havia de abrir. Se forem nomes de referência deixe-as estar na cave. Há muita firma de vinho que faz magnuns mesmo sem ser em anos
excepcionais. Uma garrafa grande impressiona sempre os convidados e pode ser que se arrefeçam – ao escorrer do tinto – aquelas maleitas da alma acumuladas ao longo do ano. Mas a ceia da consoada não se fica pelo bacalhau e, portanto, a angústia do enófilo vai continuar. Quando se chega à hora do queijo – da Serra, no caso das famílias a quem o jogo de bolsa tem sorrido – voltam os problemas. Para o enófilo a ligação ideal seria um Porto Late Bottled Vintage (LBV) mas, claro, vão logo surgir as vozes da reacção, gritando contra a heresia de comer o queijo com Porto, quando deveria ser com tinto. Calma, enófilo, não convém começar a disparatar.
Há que ter firmeza, o Galileu também teve que passar muito, é preciso força nas convicções e vamos em frente contra ventos e marés. Sirva mesmo o LBV, explique (se as crianças deixarem) o que é que se vai beber e porque é que liga bem com o queijo. Vai ver que o tal LBV vai acabar por servir para aligeirar tensões e o resto da noite acabará em bem.
E com o maldito?
Quando se chega ao almoço do, propriamente dito, dia de Natal, a neura vínica chega ao rubro. Qualquer enófilo que se preze e que tenha (como é normal) uma costela de gastrónomo vê-se perante o facto consumado de… ter de comer peru! Qualquer gastrónomo que se preze já tentou, infrutiferamente, convencer a família que até se podia fazer uma alteraçãozinha no menu. Que tal umas perdizes, e porque não uns patos e mais não sei quantas coisas banais? O resultado é sempre o mesmo: enquanto o patriarca for vivo não há mudanças! Conformado com a triste sina, o enófilo lá vai, infeliz, direito à cave à procura da melhor solução para dar cabo do animal. Parece-me que a melhor atitude é mesmo fazer tudo ao contrário do que vem nos livros: em vez de procurar um vinho que se harmonize com o bicho, em vez de tentar o equilíbrio dos sabores, o que é preciso é mesmo descobrir um vinho que se sobreponha ao peru (o que não é difícil) de forma a que o nosso palato se entretenha com o vinho em vez de estar atento às zonas fibrosas do peito ou às texturas curvilíneas das coxas. Caso haja algum recheio no animal – do tipo pasta feita com o fígado mais azeitonas descascadas e salsichas frescas e outros ingredientes nobres – o melhor é mesmo optar pelo recheio, mandar-se de cabeça às batatas fritas (das congeladas!) e guardar-se para os doces. Chegando à hora dos doces, o sofrimento vai continuar. O enófilo lá vai buscar os copos e prova para servir o Porto tawny e, claro, vai ouvir montes de bocas, do tipo – que história é esta de estar a meter o nariz dentro do copo, etc, etc. Um pouco mais à frente, apanhado distraído, o enófilo está na berlinda: ouve lá, ó palerma, porque é que estás sempre a rodar o copo enquanto estás à conversa? Tens algum tique ou quê? E agora em vez de beberes, só cheiras, é? Nesta fase do campeonato o enófilo já está por tudo. A época mais traumática do ano está quase no fim. O papel para a inscrição no ginásio já está em cima da secretária, a promessa veemente do início da dieta já está preparada, o ano novo está aí à porta e… ano novo vida nova! Claro que o início do ano é também um momento importante: é nessa altura que se começa a juntar as garrafas para o próximo Natal. Às vezes apetecia juntar algumas de veneno (não dos que matam, vá lá, mas daqueles que dão dores de barriga para três dias) para oferecer a uns quantos atrasados mentais que nos chateiam o juízo. Mas esta educação judaico-cristã é uma desgraça e, em vez do veneno, apenas conseguimos pensar em vinho de pacote. Eles não perdem pela demora. Um enófilo a vingar-se é um perigo.
Dezembro 2000
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